O meu amigo Miguel Arsénio queixava-se no outro dia da desmoralização que é dar um concerto, ter pessoal a prometer que vai e, meia-hora antes receber uma mensagem a dizer que não vai dar. “É desmotivante e um bocado chunga”, confessava ele. Acho pior. Acho que dizer que se vai fazer uma coisa e depois não fazer é mais do que desmotivante e um bocado chunga: é a não-vida no seu estado puro. Falar que se vai fazer e não fazer é o anti-Génesis 1, é Satanás a estragar a criação do Universo por Deus. Prometer e não cumprir é o des-mundo, é o upside down, é a maldição final.

Uma pessoa passa a vida inteira a tentar corresponder o que fala ao que faz, e vice-versa. Este esforço contínuo corresponde à moral mais elevada que é pedida de um ser humano. A lógica é simples: se as pessoas foram feitas pela palavra, como as Escrituras ensinam, então a palavra é o destino por excelência ao qual uma pessoa se deve entregar. Estabelece-se assim uma simetria entre o que nos criou e o que nós devemos criar, em resposta, com as nossas próprias palavras.

Neste mesmo sentido, os cristãos têm uma obsessão tal pela palavra criadora que crêem que ela não só fez pessoas, como se tornou ela mesma pessoa. Cristo é a materialização disto tudo. A ética mais sagrada para um cristão é, neste esquema de a palavra criar pessoas, ser uma pessoa de palavra. O mais triste é a pessoa que desvaloriza a palavra e convive bem com isso. Fala uma coisa mas faz outra. Existe um nome para este divórcio horrível entre falar e fazer: hipocrisia.

Cristo odiava hipócritas. O ódio de Cristo, a palavra criadora, aos hipócritas explica-se com simplicidade: como é que quem fez os homens falando, pode conviver pacificamente com homens que falam sem fazer? Falar sem fazer é o maior embuste de todos, é a ilusão de que algo vai acontecer para, depois, nada acontecer. Essa ilusão é a modalidade de satanismo mais corriqueira mas também mais eficaz na nossa vida do dia-a-dia.

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Certo. Mas quem é que pode, em boa consciência, dizer que faz tudo o que fala e que fala tudo o que faz? Todos somos hipócritas. Todos somos como os amigos do Miguel Arsénio quando prometemos ir ao show dele mas, miseravelmente, safamo-nos em cima da hora com uma mensagem desculpativa mal amanhada. Também por isso mesmo, a Bíblia nos avisa, na Carta de Tiago, que o estrago que língua pode provocar, falando o que não vai fazer, é tremendo. Falar que se vai fazer e depois não fazer estraga tanto como um incêndio. A língua é um fogo (Tiago 3:6).

Não é por acaso que uma das parábolas mais fascinantes de Jesus, o falar mais feito que já existiu e que alguma vez existirá, seja a dos dois filhos. Em Mateus 21:28-31 conta-se: “Um homem tinha dois filhos. Chegando-se ao primeiro, disse: Filho, vai hoje trabalhar na vinha. Ele respondeu: Sim, senhor; porém não foi. Dirigindo-se ao segundo, disse-lhe a mesma coisa. Mas este respondeu: Não quero; depois, arrependido, foi. Qual dos dois fez a vontade do pai? Disseram: O segundo. Declarou-lhes Jesus: Em verdade vos digo que publicanos e meretrizes vos precedem no reino de Deus.” Geralmente espera-se muito de quem fala mas até os de quem nada de bom se fala podem fazer mais. A fé cristã hipervaloriza a manutenção da palavra ao mesmo tempo que alerta para o aparecimento de surpresas.

O filho-exemplo, que fez sem antes ter falado que ia fazer, não nos leva a relativizar a importância das palavras. Mas a reconhecer que o mais fácil é, de antemão, garantir pelo que se diz o desempenho que fatalmente não conseguiremos. Às pessoas cheias de faladura acerca do que fazem, Deus prefere as que fazem sem falar. Calar mais para não ouvir de menos, ser gente de “sim, sim, não, não”—estas são todas recomendações bíblicas. Ninguém se salva por falar muito nem por fazer muito, mas tudo muda se esse falar e fazer se encontrarem em Cristo. Acerca dele, que aceita as nossas desculpas sinceras, mesmo aquelas meia-hora antes do evento que garantimos que não íamos falhar, ninguém dirá que foi “desmotivante e um bocado chunga”.