Em contexto industrial, não haverá provavelmente nos últimos anos termo mais utilizado e menos bem compreendido do que o da Indústria 4.0 (I4.0).

O assunto foi colocado na agenda mediática em 2016, na conferência do World Economic Forum (WEF), quando se sugeriu que a quarta revolução industrial, associada à utilização de robots industriais em escala, resultaria na perda de 5 milhões de empregos a nível mundial.

Mas o conceito aparece uns anos antes, em 2013, através de um relatório publicado por um grupo de trabalho alemão com participação de entidades públicas e privadas, divulgado na feira de Hannover. O objetivo era definir as áreas críticas de I&D da Alemanha, através do aproveitamento da evolução de tecnologias que iriam permitir um novo posicionamento estratégico da indústria.

É particularmente relevante o facto de ser uma revolução que se imaginava ser antecipável, contrariamente às três anteriores, e que permitiria definir claramente a aplicação de políticas e de fundos públicos. Estava dado o mote para um movimento que geraria dezenas de programas nacionais I4.0, e onde se incluía o português, ainda que com alguns anos de atraso face aos programas alemão e norte-americano.

A confusão lançada pelo WEF acabou por ser positiva por colocar o assunto na ordem do dia, mas fê-lo baseado em conceitos erróneos, relacionados com o que se perspetivava poder ser a evolução da indústria, alinhada com uma piada muito conhecida nos meios industriais sobre a fábrica do futuro: é que esta só terá um humano e um cão numa sala de controlo de operações. O humano está lá para alimentar o cão; e o cão está lá para morder o humano sempre que este tente mexer em alguma coisa.

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Só que a I4.0 não tem que ver com mais automação, mas com uma automação mais inteligente e impulsionada por um novo ponto de equilíbrio entre a oferta e a procura.

Em termos de procura, a indústria evoluiu de produção em massa para uma fase conhecida como de customização em massa, onde os produtos têm uma base comum e se introduzem alguns aspetos finais diferenciadores. Apesar de mais personalizado, o consumidor está a escolher os acabamentos dentro de gamas de variação previamente determinadas. Mas essas gamas têm vindo a aumentar, e os configuradores online permitem hoje a escolha entre milhares de combinações possíveis, tornando efetivamente cada produto (quase) único.

Ora quando um consumidor configura o seu produto online e efetua a compra, há uma ordem de produção que é lançada algures numa fábrica, e que tem de o fazer por um preço cada vez mais próximo do de um produto standard.

O que está a mudar com a I4.0 é que do lado da oferta há tecnologias que permitem esse fabrico personalizável. Na base está a miniaturização eletrónica, que tem continuado a evoluir a bom ritmo, e que permite criar componentes eletrónicos cada vez mais sofisticados, mais pequenos e com menor custo. Ao ponto de poderem ser anexados a qualquer produto de consumo sem impacto relevante no custo final.

Esta possibilidade cria um cenário futurista que faz sonhar os profissionais ligados a esta área. Estes componentes têm capacidades de sensorização, computacão e comunicação, tornando o produto que o alberga num produto inteligente. Este dispositivo, também designado por sistema ciber-físico, recebe a informação que o consumidor configurou, mesmo antes de ser construído, quando não existia para além do próprio componente eletrónico.

O produto inteligente tem a capacidade de se movimentar pela fábrica desencadeando a sua própria construção, comunicando para esse feito com equipamentos e sistemas de transporte inteligentes, eles próprios também sistemas ciber-físicos.

Neste cenário, a fábrica auto-organiza-se como um mercado, com oferta de serviços (equipamentos, sistemas de transporte, armazéns, etc.) e procura de serviços (os produtos em construção). Esta auto-organização acontece igualmente ao nível mais macro da cadeia de abastecimento, com diferentes fábricas e operadores logísticos a organizarem-se por forma a que o produto possa ser manufaturado e entregue ao consumidor.

Mas não termina aí, porque esse mesmo produto, uma vez chegado ao consumidor, continua a recolher informação e a poder enviá-la para o fabricante, que por sua vez a pode usar para criar serviços de valor acrescentado, por exemplo de manutenção, e manter assim a relação comercial. Como se pode perceber, são muitas e fascinantes as possibilidades de reposicionamento na cadeia de valor dos fabricantes.

Neste cenário, são inúmeras as tecnologias envolvidas, que em conjunto permitirão às organizações tirar partido desta revolução, como dispositivos Internet das Coisas (IoT), sistemas de grandes dados (big data), sistemas de computação co-localizado (edge computing) e na nuvem, inteligência artificial, etc.

É importante referir, por contraponto ao cenário catastrofista inicial do WEF, que muitas destas operações especializadas serão feitas por humanos, em especial quando estão relacionadas com operações em que é necessária extrema flexibilidade. Somando às novas funções que são criadas pela introdução destas tecnologias, esta revolução pode afinal resultar em mais emprego, em vez de menos, posição que, entretanto, o WEF veio a adotar.