Não é que ande arredada de jornais, mas faço por evitar notícias das rainhas do drama nacionais. Há pouco sofremos a novela da ida (mais que a própria da ida) de Fernando Tordo para o Brasil – repetindo o êxodo de Maria João Pires anos antes – e poupei-me, agora, ao desgosto do fim da carreira de Rui Veloso. Certamente por mau feitio meu, obsto a que ‘os artistas’ entendam que lhes é devido o meu dinheiro – através de apoios de e serviços às câmaras municipais ou à SEC. Ou com a ressurreição da taxa sobre os suportes que armazenam conteúdos (como as fotos das férias da criançada da família neste verão) que Gabriela Canavilhas falhou em implementar e que os socialistas seguintes (o governo atual) querem finalmente cobrar. Sobretudo quando, deixando-se o meu dinheiro entregue à minha vontade (sempre um erro fatal, segundo o estatista médio), eu teimo em não o despender com esses artistas em concreto.

Mas desta vez a minha seletividade ia ditando que eu perdesse a entrevista de Carlos do Carmo ao Diário Económico, que merece ser amplamente comentada. Passo à frente do fadista Sinatra, ilumino com brevidade a escolha de terminar com uma citação de Fidel Castro (reconhecido autor da fulgurante prosperidade cubana do pós-59), acompanho por curtos segundos o cantor no espanto pela fidelidade do público, para me centrar nas palavras esperançosas de Carmo à conta dos jovens nas ruas.

Começo por louvar Carlos do Carmo por não pretender tornar-se um ditador (a possibilidade deixou-me por súbitos instantes apreensiva) e ser partidário de um país que decide ‘juntos’ o que se deve fazer. Eu, inocente, estava convencida que era o que fazíamos de quatro em quatro anos, naqueles eventos a que chamamos eleições. Mas, pelos vistos, não. Afinal a decisão do futuro em democracia tem a ver com jovens na rua ‘a sério’ (e não, como por estes dias, a mandriar na praia). Tal como há tempos tinha, para o PCP, a ver com as manifestações mais ou menos violentas da CGTP (e anexos) em frente ao Parlamento. É da sabedoria popular: nas democracias consolidadas, a decisão ocorre nas ruas.

E também dedico umas palavras à ‘força’ dos artistas – ‘que não é pouca’, não haja por aí algum invejoso a menorizá-la. De facto, se há característica saliente nos jovens atuais é a devoção que nutrem por Carlos do Carmo, Fernando Tordo, Rui Veloso e mais uns quantos. Só não vê quem não quer. Felizmente os jovens portugueses evoluíram politicamente desde o meu tempo. Houve então uns tantos sucessos de Rui Veloso, de que ainda me lembro carinhosamente, mas eu era demasiado superficial para me deixar encadear com a verve política do cantor. E o momento mais marcante na minha relação com o fado foi um jantar com amigos de turma, tinha 17 anos, numa casa de fados na Lapa. Não me lembro de todo do fado cantado, só de termos gasto mais dinheiro do que devíamos. Salvámo-nos de ligar (do telefone público) aos pais para nos virem livrar do embaraço da escassez de dinheiro para pagar a conta porque um de nós por grande acaso levara uma fortuna na forma de uma nota de cinco contos.

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Regressemos aos jovens na rua a sério, que vão assustar de morte as elites e mudar isto tudo da forma que acharmos juntos. (E estou esmagada com a sofisticação retórica.) Calha eu andar a estudar um desses momentos em que jovens foram para a rua a sério assustar elites. Foi a Grande Revolução Cultural Proletária e contou com a entusiástica participação dos jovens chineses. Padeceu de inúmeros problemas e um deles explica-se assim: os jovens são um tanto excessivos; ou jovens. Sabe-se lá com que más intenções, os historiadores têm a mania de associar este período que contou com tão apaixonada participação dos jovens, e na rua e tudo, a caos e violência. Livros que o relatam têm títulos do calibre de Ten Years of Turbulence ou Turbulent Decade. (Apesar de ir num sentido diferente, o livro The Lost Generation, de Michel Bonnin, também é sobre os ditos jovens e não, como parece, sobre a geração de contribuintes para a Segurança Social sacrificada pelo Tribunal Constitucional). Ao tempo de agosto e setembro de 1966 atribui-se o sereno nome de ‘terror vermelho’. O género literário da ficção sobre a época tem o nome auspicioso de scar literature.

Mais: em começando com esta mania de assustar elites, os jovens acabam inevitavelmente (com imperdoável falta de discernimento) a contestar os artistas que têm ‘força’ no regime contestado, que se expressam em géneros tradicionais e que são congratulados em todas as ruas da capital por prémios de 38ª ordem.

Talvez Mao, mais que Fidel, mereça a atenção de Carlos do Carmo. É que o ilustre comunista, enfadado com o entusiasmo, que ele próprio incitara, dos ‘jovens na rua a sério’ a atormentar ‘as elites’, acabou tendo de deportar aos milhões os entusiastas para as zonas rurais chinesas e de substituir, nas ruas das cidades, também a sério, os jovens pelos militares. Que, como se sabe, são uns bárbaros incapazes de valorizar artistas.

Cautela, camaradas artistas.