A pandemia parece ter-se transformado numa oportunidade para que se multipliquem as opiniões sobre a perda de competências das crianças. Sobretudo, sobre a perda de competências sociais. E parece estar a ser aproveitada para visões aflitivas sobre o seu futuro. E ter trazido consigo a reabilitação do conceito de traumatismo. Mas serão as crianças, depois destes dois anos, tão diferentes assim?

Reparem como a Humanidade foi capaz de crescer em condições de inacreditável violência. Mesmo quando uma esmagadora maioria de pessoas não tinha direito a famílias tão atentas e tão disponíveis como aquelas que, hoje, existem. Onde a escola não era para todos. E onde os direitos e a mobilidade sociais eram restritos. Reparem como, em condições de extrema severidade económica e onde a justiça não era um bem ao alcance de todos – e a forma como se constituíam os casais não tinha a aragem de urbanidade que, hoje, existe – foi o amor de mãe e o amor de pai que salvaram a Humanidade. E que fez com que, apesar de todas as derivas populistas, mais ou menos circunstanciais, que fomos conhecendo, tenha crescido em nome do Bem. E que tenha feito da sabedoria um património de todos.

É verdade que muitas crianças passam – hoje, ainda – fome. E que as discrepâncias entre as crianças carenciadas e as crianças com recursos é enorme. É verdade que as taxas de natalidade dos países desenvolvidos e as taxas de natalidade dos países em vias de desenvolvimento são muito diferentes, o que faz com que a pobreza “produza” mais bebés, e que isso faça com que as crianças não nasçam iguais e que a escola, só por si, não corrija as distorções que a organização social acentua. E é verdade que, mesmo em Portugal, a própria escola não será capaz de compensar todas as desigualdades entre as crianças pobres e as crianças de classe média. E que tudo isto comprometa a paridade entre as crianças e acentue as diferenças entre elas por mais de uma geração. Até porque é da formação dos pais, mais do que da escola, que depende o sucesso do desenvolvimento das crianças. Mas o que não é razoável é que se imagine o crescimento das crianças à margem de sobressaltos, de riscos e de exposição a experiências de sofrimento e de dor. Por mais que seja esse o desejo dos pais. Até porque, sejamos razoáveis, todos nós temos experiências de sofrimento que, se nos deixaram cicatrizes, devidamente “aproveitadas”, se transformaram em factores de crescimento e em fontes de sabedoria. Na verdade, os maiores traumatismos de todo o nosso crescimento serão, sobretudo, aqueles que nos terão sido trazidos pelos nossos pais.

É por isso que, a propósito da pandemia, estranhe ver tantos “especialistas” a falar de traumatismos. De lesões do sistema nervoso. De incompetências sociais. Etc. Etc. Traumatismo, no desenvolvimento de uma criança, é uma “nódoa difícil”. A exposição a um sofrimento violento que, como uma cicatriz que repuxa a vida toda, nos magoa, nos condiciona e limita. Ora – desculpem! – tirando dois anos de um funcionamento escolar que trouxe limitações graves a muitas crianças que muitos fazem de conta não ver, a pandemia  (apesar de toda a tragédia que nos trouxe) será muito “pouco” para que, por causa dela, seja razoável alguma aflição oportunista quando se fala de traumatismos nas crianças. Pela simples razão que, com a pandemia, os pais inventaram melhores pais. Estiveram mais presentes na vida dos filhos. Passaram a conhecê-los melhor. Passaram a respeitá-los de outra forma, ao mesmo tempo que deixaram de os idealizar como pequenos génios. E passaram a estar mais com eles e dar outra importância às pequenas coisas. Não, a pandemia não foi o pontapé de saída duma geração mais aversiva ao estranho e mais xenófoba. Terá, antes, sido o princípio do fim duma ideia modernista de pessoa: individualista, racional e tomando o progresso como antídoto da dor.

A pandemia  foi uma experiência de dor e de medo, sim, muito amparada pela bondade dos pais. Foi uma experiência onde todos juntos fomos mais fortes. E avivou a importância das pessoas para estarmos bem. E tomou-nos mais atentos, mais cuidadosos e mais cuidadores. Será isso traumático para as crianças?… Tivemo-las mais tempo fechadas em casa? Sim. Ficaram um bocadinho “enjoadas” de estarem fechadas no quarto? Sim. Exagerámos na forma como fechámos os olhos e fizemos da televisão, dos jogos de vídeo e dos tablets um comboio de baby-sitters? Sim. Brincaram menos na rua e passaram a suspirar mais pelos amigos? Sim. E, depois, tiveram ou não tiveram melhores pais? Sim! E esta exposição ao sofrimento e ao medo torna-as mais inseguras ou mais humanas? Mais humanas; claro!

Portanto, deixem – por favor – as crianças em paz. Parem de imaginar como perigosos os factores de crescimento que as tornam melhores. Preocupem-se, isso sim, em reparar os estragos de dois anos de escola em que elas aprenderam menos e aprenderam pior… com melhores notas. Preocupem-se, em nome da infância que lhes roubamos, em deixá-las ser só crianças, em vez de as quererem a trabalhar 50 e 60 horas por semana. Preocupem-se que brinquem. Que se sujam. Que desarrumam. E que falem alto. E, não, não as usem para discursos populistas sem pés nem cabeça. Nem repitam – nunca mais – que a vossa infância foi mais feliz que a delas. Preocupem-se em torná-las felizes! Mas, por favor, insurjam-se contra todos os que o fazem delas um pretexto para nos dizerem que o futuro será pior. E contra todos os outros, que se desmazelam para os seus direitos, que fazem do Dia Internacional da Criança mais uma oportunidade para nos lembrarem (a sério?…) que “o melhor do mundo são as crianças”. Recordem-se que com realidades muito mais violentas, com experiências muito mais duras, com carências muito mais irreparáveis, com muito mais pobreza e com muito menos educação, ainda assIm, os avós dos nossos avós, os nossos avós e, claro, os nossos pais foram capazes de ser sábios e bondosos. Porque não havemos nós de ser capazes de fazer melhor? Tenham humildade; sim?!… As crianças – as crianças da pandemia – merecem pessoas melhores!

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