Sem cultura, e sem a liberdade relativa que a implica, a sociedade, por muito perfeita que seja, é uma selva. É por isso que qualquer criação autêntica é um presente para o futuro”. Começo por vos deixar uma frase de Albert Camus que traduz, de alguma forma, aquilo que penso sobre a cultura e a liberdade. Confesso que, neste texto, a introdução foi a última coisa que escrevi. Nunca o tinha feito, costumo seguir um pensamento estruturado. Mas, neste Dia Mundial da Liberdade, e durante esta minha reflexão, comecei por pensar uma coisa e, ao longo da minha escrita, fui mudando de opinião. E não é também esta adaptação de pensamentos a beleza da arte?

A reflexão a que me proponho pretende perceber se existe cultura sem liberdade. Fiz esta pergunta a vários companheiros meus e a resposta de todos foi unânime. Pergunto-me porquê.

A cultura é algo que nos incentiva a acumular um conjunto de experiências, gestos, palavras, enfim, toda esta área que implica estar em sociedade. É tudo aquilo que representa a nossa relação com o estar em vigília, com o fazer coisas, com o estar alerta. Limitarmos os nossos gestos, pensamentos e mesmo própria existência pressupõe, de forma quase aritmética, o encolhimento da cultura, ou a sua desertificação. É por isso que acredito que estas duas dimensões estão intrinsecamente associadas, porque a ideia de cultura nasce da ideia de liberdade. Quase como irmãos gémeos. Para que começássemos a abandonar a nossa relação com a natureza e criar uma razão humana de existir, teve de existir liberdade – interior e exterior. Teve de existir uma ascensão, um olhar novo, uma distância da nossa forma natural. E teve de existir cultura.

Pensemos n’ “Os Lusíadas”. É uma obra de liberdade de pensamento, de velocidade de pensamento e mesmo de agilidade. Camões teve uma capacidade maravilhosa de conjugar estes fatores. Porque, de facto, a vida e a arte têm de se conjugar. É preciso experimentarmos para julgarmos, para sofrermos e para conseguir tornar claro os nossos sentimentos aos olhos dos outros. No fundo, são estas “dores de crescimento” que nos tornam capazes de nos distanciarmo-nos de nós próprios. E isto, meus caros, é também um exercício profundamente ligado à cultura.

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Camões fez a cultura daquele tempo, numa época que chamava por alguém capaz de construir uma obra deste caráter. Ou seja, o autor fez o tal exercício de distanciamento de si mesmo, contando, ainda, com um conjunto de parceiros, diálogos e compreensões. Eu diria, então, que a cultura pressupõe dois momentos completamente contraditórios. Por um lado, empurra-nos para um determinado tipo de, eu diria, aprisionamento, mantendo-nos sustentados a um certo chão e em comunicação com os outros. Por outro lado, obriga-nos a um momento de golpe de asa, de superação.

A cultura é, assim, uma espécie de devedor deste exercício de liberdade. Preserva experiências, criando algo constante para todos, e necessita da liberdade para a contrariar. Para se ir renovando e repensando-se a si própria (tal e qual como aconteceu com o meu pensamento introdutório!).

Ora, a cultura é, então, contrária à liberdade. Mas, caso a liberdade desapareça, a cultura deixará de existir também. Ou passará a ser apenas algo sem sentido nenhum.

Disse, no início, que a cultura e a liberdade são gémeos. Mantenho o pensamento, mas acrescento que são irmãos de costas voltadas. Dependentes um do outro, mas desavindos. Precisamos de ser livres para colocar a cultura em causa. Para a tornar mais flexível e fazê-la ganhar novos elementos que a fortifiquem. Alimentemos a cultura, com exercícios de liberdade! Cozinhar novos pratos, escrever novos livros, produzir novos filmes. A cultura tem todas estas multiplicidades de expressões e devemos usar a nossa autonomia para a renovar.