Diante da morte, compreendemos com absoluta nitidez o valor insubstituível da vida. Diante da morte, somos tudo o que, muitas vezes, não somos capazes de ser diante da vida: próximos da essência e longe do quotidiano dizimado pela cultura do descarte.

A morte – essa iniludível certeza – é o momento mais profundo para reconhecermos as insuficiências e as responsabilidades perante quem desaparece. Um redemoinho entre o que se fez e o que se deveria ter feito, entre o que já foi e o que não deveria ter sido, entre o que não se foi capaz de dizer e o que se disse por não se ser capaz de calar.

Escreveu Vergílio Ferreira: “O que mais me intriga e dói na nossa morte, como vemos na dos outros, é que nada se perturba com ela na vida normal do mundo. […]. Repara no que acontece com a morte dos outros e ficas a saber que o universo se está nas tintas para que morras ou não. E isso é que é incompreensível – morrer tudo com a tua morte e tudo ficar perfeitamente na mesma”. Ou, parafraseando Jorge Luís Borges, será que somos apenas o esquecimento que seremos?

O país está, por estes dias, invadido pela aceleração da morte por via de legisladores apressados, sôfregos, em regime de trocas político-partidárias, que querem ver legalizada a eutanásia, a que hipocritamente chamam morte clinicamente assistida. Eis o estertor de uma cultura de morte que completa o seu ciclo indigno: da criança por nascer que morre sem ser ouvida, ao velho que se descarta numa lógica utilitarista porque é um peso para outros e, por fim, à morte a pedido, sabe-se lá em que condições. Dizem-nos, ufanos, que é um acto de dignidade e uma expressão de liberdade! E há quem nisso acredite, levado pela onda corrosiva do relativismo e do individualismo. Os paladinos da eutanásia defendem que cada qual é livre de decidir sobre a sua morte. Omitem sempre que, na eutanásia ou no suicídio assistido, essa liberdade pressupõe que outrem mate ou ajude a matar. Fingem ignorar que qualquer lei que abra uma pequena janela, mais tarde ou mais cedo, abre muitas portas, como já acontece em países que legalizaram a eutanásia (ouvi, na TV, um médico dizer que, na Holanda, os 4% das mortes por via da eutanásia são um valor moderado e razoável!). Segundo os pró-eutanásia, o médico, que prestou o juramento de Hipócrates, além de tratar, cuidar ou curar, também pode matar o doente nas situações que, por via de uma lei, são legalizadas.

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Jamais poderemos substituir a morte morrendo pela morte matando, a dignidade do fim da vida pela morte a que chamam “morte digna”, a insuficiência ética pelo excesso jurídico, a lei natural pela norma jurídica ordinária, a deontologia jurada pela desumanização criada.

Este é um processo legislativo a correr em regime de contra-relógio, como se o mundo acabasse amanhã (e a legislatura também), onde se remete para duvidosos inquéritos de opinião de uma maioria favorável, ignorando que há valores, como o maior de todos – a vida —, que obedece à lei natural e ao desígnio do bem comum e não a “opiniões”.

Esta questão não é de esquerda ou de direita, não é confessional ou laica (a propósito, porque será que o PCP não é convidado para os debates televisivos destes dias? Será para induzir a ideia falsa de que a luta contra a eutanásia é coisa só de fiéis e conservadores?). Este assunto é, sim, de cariz civilizacional. Tem, aliás, antecedentes históricos mesmo nada recomendáveis. E menos se entende a eutanásia quando o progresso científico e técnico permite, paliativamente, atenuar um dramático sofrimento no fim de vida.

A vida é um bem indisponível. Não pode invocar-se a autonomia contra a vida, pois só é livre quem vive. A eutanásia não representa um acto de liberdade, mas a supressão da própria essência da liberdade. Não pode justificar-se a morte de uma pessoa com o consentimento desta. O homicídio não deixa de ser homicídio por ser consentido pela vítima. A inviolabilidade da vida humana, consagrada no artigo 24º, nº 1, da Constituição Portuguesa, não cessa com o consentimento do seu titular.

É absurdo falar em “direito à morte”, como seria absurdo falar em “direito à doença”, porque o direito tem sempre por objecto um bem na perspectiva da realização humana e pessoal, e a morte não é nunca, em si mesma, um bem, pois todos os bens pressupõem a vida e nunca a morte.

Portugal, que foi pioneiro na abolição da pena de morte, está agora nos “países da frente” de expressões hediondas de indução da morte. Tudo com o nosso esforço tributário, num serviço nacional de saúde, onde não há condições, nem dinheiro suficiente para bem prevenir, cuidar, curar, acolher e proteger, como deveria ser a regra em pleno século XXI.

Uma miséria moral e uma indigência ética que nos são servidas por uma maioria ocasional, que trata este assunto como a mesma impertinência, simplismo, superficialidade, vulgaridade e trivialização de uma qualquer lei insignificante.

Neste assunto, sabe-se como se começa, não se sabe como acaba…

Escrito com a grafia anterior ao chamado AO