Poucos conflitos inflamam tanto os espíritos como o israelo-palestiniano. Quase todos têm uma posição de partida e, por isso, é muito difícil argumentar, até pensar. Os campos parecem tão irredutíveis como os radicais que, no terreno, têm tornado impossível qualquer avanço para uma solução de paz sustentável. No entanto, sem percebermos o que está em causa neste conflito em concreto, é impossível ser razoável. E eu vou tentar ser razoável.

Naturalmente que tenho posição, uma posição que pode parecer consensual mas não é. O meu ponto de partida é que Israel tem o direito de existir. E que deve ser possível existir, a seu lado, um estado palestiniano viável capaz de viver em paz com o estado judaico. Para que isso aconteça é necessário, entre outras coisas, que Israel aceite uma solução com base nas fronteiras anteriores a 1967, o que implica trocas de território e desocupação de colonatos, e que o lado palestiniano abdique do “direito de retorno“.

Por incrível que pareça, agora que parece estarmos de novo mergulhados na mesma guerra eterna de sempre, até abril houve negociadores israelitas e palestinianos sentados à mesa das negociações e fazendo progressos sensíveis. Sob o auspício do secretário de Estado norte-americano John Kerry. A história vem contada com enorme detalhe na última edição da New Republic, num exemplar trabalho de investigação em que os jornalistas falaram com mais de 100 fontes diferentes, israelitas e palestinianas.

O que a história dessa negociação fracassada nos conta é que existe, dos dois lados, muita gente interessada realmente em conseguir um acordo. Gente que inclui, do lado palestiniano, o presidente, Mahmoud Abbas, e do lado israelita o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, e a ministra da Justiça, Tzipi Livni. Mas que isso não impede que os radicais consigam quase sempre fazer abortar qualquer acordo.

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Numa síntese brevíssima, podemos dizer que o fim das negociações aconteceu em abril no momento em que a Fatah de Abbas fez um acordo de governo com o Hamas, um gesto que se saberia que teria essas consequências. E a Fatah fê-lo porque havia atrasos do lado israelita no cumprimento de alguns compromissos. A escalada veio a seguir e teve como momento detonador o rapto e assassinato de três jovens israelitas.

Se alguma coisa caracteriza o actual conflito é que ele não é entre a Autoridade Palestinana e Israel – é entre Israel e o Hamas. E isso sucede porque tem sido o Hamas que, a partir da sua base em Gaza, tem desencadeado os ataques contra Israel. Por regra, contra as suas populações civis.

A actual guerra de Gaza começou quando o Hamas intensificou a sua barragem de rockets e mísseis, desta vez com capacidade de chegarem até Tel Aviv e Jerusalém. Esses ataques – que não são novos: desde pelo menos 2006 que são disparados regularmente rockets contra as povoações israelitas mais próximas da Faixa de Gaza – deram a Israel o pretexto para começar a sua operação militar que começou por ter como objectivo destruir as rampas de lançamento e os arsenais do Hamas, arsenais esses que tinham crescido enormemente durante o tempo em que a Irmandade Muçulmana esteve no poder no Egipto (o Hamas é uma organização que começou por ser o braço palestiniano da mais antiga organização islamista do mundo árabe).

Os objectivos do exército israelita são, porém, mais amplos: com esta operação pretende-se, também, desarticular a rede de túneis que o Hamas construiu nos últimos anos e que tem utilizado para infiltrar militantes em Israel.

O argumento de Israel é forte. Em 2005, o estado judaico desocupou por completo a Faixa de Gaza, desmantelando todos os colonatos aí existentes e entregando a soberania à Autoridade Palestiniana. Pouco tempo passado, começaram a cair no sul de Israel rockets disparados a partir de Gaza. Em 2007, o Hamas tomou o poder no território, desalojando a Autoridade Palestiniana e a OLP. Entre Dezembro de 2008 e Janeiro de 2009 e em 2012, Israel desencadeia duas operações militares para tentar acabar com o disparo de mísseis, mas a mudança de poder no Egipto acaba por ajudar o Hamas a rearmar-se. Antes de se iniciar a actual operação estimava-se que já dispusesse de mais de dez mil rockets e mísseis, alguns deles com um alcance de 150 quilómetros (o Hamas chegou a ameaçar abater aviões comerciais que se dirigissem para o aeroporto Ben Gurion).

Face a estas ameaças, com as suas cidades mais importantes à mercê de ataques que podem surgir a qualquer hora, Israel reivindica o direito de se defender. E a verdade é que parece haver muita gente, na região e no mundo, a desejar que o faça com êxito. O Hamas, que passou a ter no Cairo um poderoso inimigo e que deixou de contar com o apoio de Damasco, é um grupo radical muito mais isolado. A própria Autoridade Palestiniana, que devia marcar eleições em breve, deseja vê-lo enfraquecido. Há, por isso, a sensação de que a diplomacia evoluiu suficientemente devagar para não parecer que está parada e, ao mesmo tempo, dar tempo a Israel para concluir a sua operação. É como se todos tivessem a percepção de que, com o Hamas entrincheirado em Gaza, daí lançando ataques constantes contra Israel e mantendo a sua retórica de “vamos matar os judeus todos”, será sempre muito difícil recomeçar qualquer processo de paz.

Israel também sabe que tem muito pouco tempo. Cada dia que passa, e em que aumenta o número de baixas civis em Gaza, é menos um dia de tolerância. Isso mesmo estão, neste momento, a dizer todos os analistas na imprensa judaica. No entanto, a falta de tolerância para com as mortes de civis não deve ser confundida com qualquer equivalência moral entre Israel e o Hamas.

Tomemos, a título de exemplo, uma notícia dos últimos dias que passou muito despercebida: a descoberta, pela agência das Nações Unidas que apoia os refugiados palestinianos, a UNRWA, de um pequeno arsenal de rockets no interior de uma escola gerida pela organização humanitária. Foram os porta-vozes da organização que o reconheceram, informando que depois entregaram as armas às “autoridades locais” – ou seja, ao Hamas.

Isto não é propaganda do exército israelita, são fontes oficiais das Nações Unidas, absolutamente insuspeitas pois, por regra, mostram-se alinhadas com os palestinianos. Mas são informações que confirmam o tipo de comportamento seguido pelo Hamas há anos: colocar as suas instalações militares e as suas rampas de lançamento em zonas civis (incluindo escolas, como se vê), para depois atrair o fogo dos aviões israelitas. Quando isso é feito numa zona tão densamente povoada como Gaza tem como consequência a morte de civis. Por muito que estes sejam avisados para saírem das zonas de combate, como têm sido avisados.

Se alguma coisa o exército israelita está a fazer de diferente relativamente a outros exércitos modernos, de países ocidentais, em operações militares recentes, é que está a envolver na operação tropas a pé, que se envolvem em combates quase corpo a corpo, uma forma de combater que provoca muito mais baixas, como de resto está a acontecer.

No conforto das nossas poltronas, é fácil produzir sentenças sobre o que vemos nas televisões sobre Gaza. Diferente é saber o que faríamos se confrontados com a mesma situação. Diferente é entender que não se pode colocar no mesmo plano moral uma organização que procura matar civis, mesmo que com pouco êxito, e um Estado que arrisca a vida dos seus soldados para minimizar as baixas civis. E que aceitou tréguas para que passasse pelas suas fronteiras ajuda humanitária, tréguas que o Hamas quebrou repetidamente.

Não tenhamos ilusões: há nos governos de Israel e da Palestina gente que quer trabalhar pela paz, mas há quem nesses países tudo faça para o impedir. Tragicamente, uma das organizações que o faz, o Hamas, governa hoje um enclave de 1,7 milhões de almas, enclave que utiliza para nunca deixar que alguém discuta sequer uma solução que passe pelo reconhecimento do direito de Israel a existir. Há muita gente a morrer em Gaza por causa disso.