Um indivíduo (humano) solitário numa ilha deserta não tem direitos. A existência de direitos implica a existência de outros humanos (pelo menos um) que tenham a obrigação de os respeitar. Um direito não pode ser invocado perante a Natureza, ou, sendo mais específico, perante um animal (não humano), porque este último não pode intuir uma obrigação perante o individuo da espécie sapiens sapiens que invoca esse direito.

No máximo, um humano pode ter poder sobre a Natureza (aceitando, por simplificação, que os Homens – aqui com maiúscula – não fazem parte da Natureza), mas não tem qualquer direito sobre ela, porque o “direito” é uma convenção humana que implica vida em sociedade.

Por exemplo, a Convenção dos Direitos do Homem aprovada pelo Conselho da Europa prevê, no nº 2 do artigo 2º do Protocolo nº. 4 (de 1962), um direito que os comunistas em geral não apreciam, que é o de que “toda a pessoa é livre de deixar um país qualquer, incluindo o seu próprio”. Não faz sentido invocar este direito contra Natureza: a menos que haja alguma intempérie ou eu esteja numa ilha isolada do Pacífico, a Natureza não impede a minha deslocação. Este direito é invocado contra o Estado, que tem a obrigação de não bloquear a saída de alguém do seu país (a menos que haja razões de força maior admissíveis numa sociedade democrática).

O próprio direito à vida, que parece tão óbvio, implica o dever de não se atentar contra a vida de outrem. Mais uma vez, este direito implica, pelo menos, uma inação de terceiros no respeito pela vida alheia. Não faz sentido invocar este direito contra um urso ou contra um terramoto (considerando que ambos, mais uma vez por simplificação, são fenómenos da Natureza, da qual os humanos, algo presunçosamente, se diferenciam).

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(Curiosamente, a Convenção dos Direitos do Homem, na versão de 1950, não proibia ainda a pena de morte: “Ninguém poderá ser intencionalmente privado da vida, salvo em execução de uma sentença capital pronunciada por um tribunal, no caso de o crime ser punido com esta pena pela lei.”)

Nos exemplos anteriores, há essencialmente uma obrigação de inação face ao titular do direito (não impedir a saída do país; não matar). Mas podemos dar um passo em frente: a Constituição Portuguesa refere (artigo 65º) que “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada (…)”.

Significa isto que eu me posso sentar à espera de que alguém me dê uma habitação de dimensão adequada? Dito de outra maneira: existe uma obrigação de que alguém me dê uma habitação adequada? A mesma Constituição refere que essa obrigação “incumbe ao Estado” (em rigor, incumbe ao Estado promover e executar uma série de políticas que permitam cumprir essa obrigação), mas o “Estado” é uma abstração e, na prática, é necessário que alguém trabalhe para pagar impostos que permitam ao Estado cumprir o dever de me proporcionar uma habitação adequada. Dito de outra forma, eu tenho um direito e o dever correspondente é de todos os outros.

As declarações de direitos tiveram sem dúvida intenções generosas – em especial tendo em conta o período histórico em que foram feitas (como a Declaração Universal de Direitos do Homem, de 1948, no pós-guerra) – mas a sua concretização pode gerar contradições insanáveis. O “direito ao trabalho” é incompatível com a “liberdade económica”, já que esta assenta num princípio de tentativa e erro (uma empresa pode ter bons resultados ou falhar) e consequentemente pode originar surtos de desemprego. Um Estado que quisesse eliminar o desemprego teria que optar pela socialização total dos meios de produção e orientar, por decreto, os trabalhadores para as tarefas definidas pelo próprio Estado – o que implica um Estado totalitário, sem ambição pessoal dos indivíduos.

Definir deveres é assim muitíssimo mais difícil do que invocar direitos, porque obriga a um choque com a realidade. “Salários, direitos [e] carreiras” (CGTP) implicam o dever de pagar salários e financiar direitos e carreiras. A diferença entre falar de deveres e falar de direitos está na maturidade dos intervenientes: falar de deveres implica tratar os indivíduos (os eleitores, por exemplo) como adultos.