Se o Livro do Desassossego fosse nosso contemporâneo, seria difícil a Bernardo Soares conseguir ignorar a presença, no nosso espaço urbano, das dezenas, quiçá centenas, de trabalhadores que fazem das entregas de comida o seu meio de subsistência e das múltiplas artérias da cidade o seu local de trabalho.

Desde que tomei Lisboa como casa, raras foram as ocasiões em que, ao espreitar através do vidro da janela, a minha atenção não foi captada por caixas coloridas, carimbadas com o logótipo de uma qualquer multinacional dedicada a assegurar esse tipo de serviço. O mesmo é também frequente acontecer ao palmilhar as imediações da maioria dos espaços dedicados à restauração, sejam negócios familiares ou filiais de grandes cadeias de fast food, especialmente à hora das principais refeições. À porta de muitos deles perfila-se até um autêntico exército de entregadores de comida, cada um dos quais remetido à espera paciente pela sua vez de recolher o pedido que uma aplicação digital lhes destinou. Quando esse momento chega, a encomenda é acondicionada e começam a ser trilhados os primeiros metros em direção ao destino, seja sob sol tórrido de verão ou sob chuva gélida de inverno, muitas vezes a pé e noutras com recurso a veículos como trotinetes, bicicletas ou, menos assiduamente, motociclos. Alcançada a morada no conforto da qual a solicitação foi feita, se esta estiver inserida num prédio, não raras vezes se exige ao estafeta que supere os lances de escadas que o separam da porta do apartamento do cliente para que a comodidade do último seja ameaçada à escala mais microscópica possível.

Já tive a oportunidade de ouvir comentários, em certa medida alicerçados num olhar inocente ou porventura alienado da realidade, que caíram na tentação de estabelecer um paralelo entre estes estafetas e as resistentes e incansáveis formigas que dedicadamente abraçam a labuta de carregar às costas os mantimentos de que se irão servir, posteriormente, no conforto do lar. Contudo, nem as refeições transportadas serão para usufruto próprio nem as receitas retiradas deste trabalho são justas e muito menos o serão as condições em que este é exercido. A comparação inicial talvez só faça mesmo sentido se for tida em linha de conta a fragilidade destas pessoas no contexto do mundo laboral, sujeitas às constantes pisadelas infligidas por entidades de maior dimensão, designadamente as grandes empresas que nelas se apoiam para assegurar a prestação do serviço a partir do qual retiram lucro.

Vistos como meros parceiros, a operar por conta própria, a exploração a que estes trabalhadores são sujeitos fica evidente até no simples facto de este estatuto não lhes ser reconhecido. Sem direito a contratos de trabalho, salário fixo – e muito menos salário mínimo -, férias pagas ou reforma, os rendimentos estão sempre dependentes do número de entregas realizadas e a margem de proveito por cada uma é mínima. Além disso, a aquisição do meio de transporte utilizado nas entregas, bem como a sua manutenção, é da responsabilidade dos estafetas e o mesmo acontece com o combustível. Também no que diz respeito ao horário de trabalho não há qualquer tipo de regulamentação e a possibilidade de maximizar o provento, mesmo que o preço a pagar seja acrescentar mais umas dezenas de quilómetros percorridos à conta pessoal, sobrepõe-se ao direito ao descanso, seja no final do dia, em fins-de-semana ou feriados.

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É inelutável reconhecer que a oferta deste tipo de serviços introduz vantagens, pelo menos para algumas das partes envolvidas. Num contexto em que a agitação foi sugada das ruas, os estabelecimentos comerciais fecharam e foi imposto o dever de circunscrever movimentações à área de residência, a possibilidade de recorrer a entregas ao domicílio apresentou-se como uma bomba de oxigénio para muitos pequenos negócios de restauração. No entanto, a outra face da moeda não pode ser ignorada e nunca se poderá fechar olhos perante as condições de trabalho desumanas a que muitos estafetas foram sujeitos desde que os efeitos da pandemia se começaram a fazer sentir, muitas vezes obrigados a assegurar as próprias despesas decorrentes da aquisição de material de proteção sanitária, expostos ao perigo e sem qualquer tipo de garantia de assistência em caso de doença. Não obstante empresas do setor alegarem que garantem apoio em caso de acidente, de enfermidade ou até de assalto, multiplicam-se, em particular nos últimos meses, as queixas por parte de quem se viu confrontado com algum destes infortúnios. Entretanto, divulgaram-se notícias em catadupa, algumas delas – como aconteceu em Itália – com considerável projeção mediática, a reportar um aumento do número de investigações direcionadas contra empresas desta natureza e no seguimento de denúncias relativas ao tratamento dado aos seus parceiros. Importa, a este propósito, ter em atenção o facto de muitos deles serem imigrantes em situação de particular vulnerabilidade, com um natural desconhecimento da legislação laboral nos países de acolhimento e que, por isso, acabam por ser alvos privilegiados para os abusos praticados.

Desde finais do ano transato têm-se multiplicado apelos no sentido de proceder à regulamentação do trabalho neste setor, com Espanha e Reino Unido a darem bons exemplos nesta matéria, e a vontade de fomentar o debate em torno destas questões tem vindo a ser demonstrada no seio da União Europeia. Neste sentido, é indispensável que em todos os Estados-membros, Portugal incluído, se legisle no sentido de regulamentar a atividade destas plataformas, assegurando que os seus empregados são vistos como trabalhadores perante a lei e que estão escudados por direitos laborais fundamentais e inegociáveis associados a este estatuto.

É inaceitável que a exploração e a precariedade na sua forma mais violenta tenham livre trânsito no nosso mercado de trabalho e estas jamais poderão merecer complacência. Enquanto não forem repostas justiça e dignidade nestas relações laborais profundamente desequilibradas não poderemos olhar de consciência tranquila para as ruas das nossas cidades.