Apareceu há uns dias uma proposta, estranha no mínimo, para cortar vagas no ensino superior no valor de 5% para Lisboa e Porto. No total seriam 1.100 vagas a cortar no ensino superior público nos estabelecimentos dos dois maiores polos urbanos do país, abrangendo ensino universitário e politécnico. As grandes cidades acumulam quase 50% dos acessos ao ensino superior pelo que, com base numa redução de 5% de entradas nestes polos, se permitiria homogeneizar mais o país e, aqui d’el rei, desatar a povoar o interior de jovens universitários por decreto. À força. Em paralelo, descongelar-se-iam vagas no interior e os 5% retirados ao litoral seriam mais 5% dados ao interior. Será mais ou menos isto o que, como proposta, não está mau. A primeira vez que ouvi pensei mesmo que era brincadeira. Mas nos dias que correm…

Resolvi ler alguns conteúdos e a proposta existe e há uma decisão por tomar. Por mais que pense não consigo descobrir uma única vantagem para este corte (talvez haja mas, para mim, estão por vislumbrar). Enumero algumas razões para este meu pensamento contrário mas não esgoto todas. No final, deixo duas medidas que, essas sim, viriam contribuir em muito para poder fortalecer o ensino superior nestes polos urbanos – e não prejudicá-los – e sem afetar em nada o interior, talvez antes ajudando-o (não à força, óbvio).

Em primeiro lugar há uma dada capacidade instalada pelas universidades e politécnicos de Lisboa e Porto. Não vou entrar em questões de financiamento. Mas vou entrar, sim, em questões de capacidade. Ora se as instituições destes polos urbanos conseguem formar anualmente estes 1.100 alunos hoje e continuam a ser as mais procuradas, qual o esforço que teriam de fazer para deixar de os formar? Existe capacidade instalada para este número de vagas por ano pelo que como se resolve o problema da capacidade instalada que poderia ficar, agora no litoral, excedentária? Dar-se-iam benefícios para que, também os docentes, migrassem para o interior junto com os alunos que iriam perder?

Ou o facto de haver capacidade instalada excedentária no interior, com menos procura que no litoral e nos dois grandes polos urbanos, é motivo para que se crie capacidade instalada excedentária quer no interior quer no litoral?

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E é aqui que entra o segundo argumento. Nenhum estudante irá para o interior estudar por decreto (ou nenhum que justifique esta medida e muito menos 1.100 estudantes). Isto dito, a capacidade instalada excedentária continuaria a verificar-se no interior do país e, mais ainda, começaria a criar-se igualmente no litoral e nos grandes polos urbanos. Menos estudantes, no global, no ensino superior público seria uma consequência que me parece relativamente evidente.

Ora isto leva ao terceiro argumento. Um corte no sistema universitário e politécnico público implicaria certamente um fortalecimento do sector privado nos grandes polos urbanos. E atenção que nada tenho contra o privado, antes pelo contrário. O bizarro disto, face à composição do governo e ao seu pensamento putativo – bem sei que a ideologia já não é o que era – é o contrassenso que a medida iria gerar. Uma medida que poderia essencialmente beneficiar o ensino superior privado dos grandes polos urbanos e que afastaria mais candidatos com dificuldades em pagar – e bons alunos – do sistema público.

Em quarto lugar, o ensino superior não é (e não deverá ser) uma “indústria” alheia ao mérito, e em particular ao mérito da instituição a que cada qual se liga, à possibilidade de internacionalização, à procura de outros mundos e horizontes para o seu mundo. Ora dizer a um jovem português com ambição, com boas notas, e aqui coloco os que têm meios para pagar e os que não os têm (a ambição é saudável e legítima a todos), que tem que ir para o interior estudar é no mínimo pouco moralizador. Eu gosto muito do interior, particularmente do Alentejo (como bem sabe, e porquê, quem me conhece). Mas não “servido” à força. Não estamos a tratar produtos ou quotas “leiteiras”, por exemplo. E ainda assim… Estamos a falar de seres humanos que procuram estruturar percursos profissionais o mais sólidos possível para conseguirem projetar-se em mercados competitivos globais. Quanto mais informados estiverem os jovens e as populações em geral mais apostarão em aceder às que consideram ser as melhores instituições do país.

Em quinto e último lugar apenas uma nota que me parece cada vez mais evidente. Um jovem hoje procura no ensino superior um pacote completo. Uma experiência ou um conjunto delas. Um mundo ou um conjunto de mundos. Também um cosmopolitismo em termos de vida e de enriquecimento pessoal. E isso, queira-se ou não, apenas os grandes centros urbanos podem proporcionar. Este cosmopolitismo está maioritariamente – em Portugal – em Lisboa e no Porto. É certo que se pode dizer que no exterior existem várias universidades com campus fora dos grandes centros urbanos. Verdade. Mas antes de experimentarem o nosso interior os bons alunos irão certamente experimentar esses campus universitários e emigrarão para fazer os seus cursos de licenciatura no exterior. É bom não esquecer que há muito país na Europa (os países nórdicos) onde não se pagam sequer propinas e onde o network internacional é fortíssimo. E a experiência será a não esquecer.

Haveria muitos mais argumentos que não vou sequer aqui esgrimir.

Se, do meu ponto de vista, cortar vagas é uma miragem e não o ataque ao problema – é como resolver um não problema acreditando que se está a contribuir para resolver um problema –, as questões em que se deveria pensar seriam, ao contrário do corte, duas. Há mais, muitas mais, mas deixo pelo menos duas.

A primeira é a possibilidade de se começar a criar um sistema de acesso às instituições de ensino superior não apenas de acordo com médias de ensino do secundário e médias de exames nacionais mas, também ou mais ainda, de acordo com as provas que as várias instituições definissem para os seus candidatos e de acordo com o projeto e o alinhamento que os candidatos teriam para com esse projeto. Virámos há pouco o século, verdade, mas o meu pai (geração acima da minha) quando entrou no Instituto Superior Técnico ainda o fez por provas de acesso…ao Técnico. Portanto, já soubemos o que isto era e bem poderíamos, neste caso, aprender com o passado.

Talvez, e digo-o convicto, havendo provas específicas de acesso às universidades do interior seja possível mobilizar mais candidatos, aproveitando para explicar a natureza do projeto que estas mesmas instituições têm para si próprias – e não o tendo melhor será criá-lo.

A segunda é a possibilidade de “trocar” vagas. “Levem” os 5% de vagas para o interior (que não vão ser preenchidas à força – disso estou certo – mas onde haverá quem acredite que é possível mexer no mercado e que esse mercado não tem vontade própria) e em troca atribuam às instituições que se candidatarem para o efeito mais um bom conjunto de vagas (bem mais que 5%), não obstante, estritamente viradas para os mercados internacionais. Se se está tão faminto e desejoso de cortar vagas no litoral e nos grandes polos urbanos e se se acha que isto vai resolver alguma questão (que não vai) então porque não “trocar” vagas condicionadas, reguladas, com propinas protegidas, por vagas abertas e de mercado? Para que possamos, isso sim, ter entre nós mais alunos de outros países a estudar…

E mercado existe. Há quem queira pagar para vir estudar para Portugal e desde logo na licenciatura. Há forma de se criar mais receita própria e as universidades públicas dependerem menos dos parcos recursos do Estado. Todos sabemos que o país será tanto mais viável quanto mais exportarmos. Então porque não se criam condições de mercado para exportarmos também no ensino superior e, desde logo, nas licenciaturas? Um cidadão nacional paga X de propinas (continuará a pagá-las); um cidadão externo pagará X+Y em que Y repõe o valor real da propina e X+Y é o valor que o mercado internacional atribui, e está disposto a pagar, a determinada instituição por essa propina. Mercado a funcionar.

Ou será um crime, também, atrair cidadãos do mundo inteiro para as licenciaturas como hoje se faz para os mestrados? Será uma bizarria ou poderiam as instituições, que já hoje ensinam em inglês, captar mercado internacional a preços de mercado verdadeiramente internacional? É uma forma de financiar as instituições e de ser capaz de potenciar o seu crescimento e a sua competitividade se comparadas com muitas congéneres no exterior. E talvez queiramos ser competitivos (ou o ensino superior fica de fora do prato da competitividade?), não?

Ao contrário, preferimos o choro do “Portugal não é competitivo” a fazer alguma coisa. E ainda se pergunta o que fazer!? Uma resposta fácil, facílima, está aqui. As instituições candidatam-se a esse corte e, em troca dos menos 5% recebem a possibilidade de abrirem vagas para exportação (venham então chineses, turcos, brasileiros, japoneses, indianos, nórdicos, queremos todos). Sem propinas protegidas e com seleção feita pelas próprias instituições. Para as licenciaturas.

A resolução dos 5% terá de fechar-se até Maio de 2018, altura do lançamento das condições e vagas de acesso para o próximo ano letivo. Oxalá, a bem de todos, litoral, polos urbanos e interior, este pensamento de quotas e cortes não se imponha à racionalidade e ao bom senso que deve imperar. O mérito deve ser, em todas as circunstâncias, o fio condutor de um qualquer sistema de ensino superior. E as quotas não são mérito. São decreto e, minha modesta opinião, mau decreto…

Na linha do dislate e para acabar (e mesmo assim bem mais favorável que o corte dos 5% de vagas) pode-se pedir também para os professores residentes em Lisboa, uma vez que os salários são iguais para todos os professores em todo o país, um aumento salarial de 30% face aos seus congéneres professores de outros pontos do país? É que é também uma medida de homogeneização do território, é também equalização do mercado e é uma medida regulatória imperativa para equilibrar as coisas uma vez que o poder de compra médio global do cidadão de Lisboa é inferior, em 30%, ao dos restantes cidadãos do país.

É que se o corte de 5% de vagas no ensino superior público em Lisboa e Porto não é a brincar então, bom, então vale tudo.

Professor Catedrático, NOVA SBE – Nova School of Business and Economics, crespo.carvalho@novasbe.pt