Velocidade, vertigem, violência, são as palavras que descrevem bem a mobilidade do nosso tempo e a informação que ela consubstancia. O movimento é a substância do tempo presente. Não surpreende, portanto, que o risco de colisão seja iminente e que o acidente possa acontecer a qualquer momento. Neste movimento vertiginoso em que estamos envolvidos quase tudo está georreferenciado e, digamos, a nossa mobilidade pode ser experimentada como uma espécie de desporto de orientação, um entretenimento permanente que o smartphone nos oferece. Ao mesmo tempo, todavia, observamos uma crescente pulverização e um deslaçamento das nossas relações interpessoais, em trânsito das instituições comunitárias mais convencionais para as novas comunidades virtuais da sociedade digital, isto é, as inter-relações e os laços fortes das velhas instituições comunitárias dão o lugar às transações e aos laços fracos das comunidades virtuais. Neste movimento vertiginoso, intermediado pelos dispositivos tecno-digitais, a pulverização das nossas inter-relações pessoais transforma-se, cada vez mais, em narcisismo e calculismo interpessoal. Os laços de vizinhança são convertidos em conexões reticulares, enquanto os valores e princípios que informam a ética da condição humana são erodidos e consumidos pela voragem do tempo instantâneo. A solidariedade, a empatia e a compaixão humanas são transformadas pelas máquinas inteligentes e pelo jogo dos interesses e do calculismo narcisista e convertidas em violência, rebeldia, revolta e, no limite, revolução. Não é bonito de se ver. Vejamos, mais de perto, alguns aspetos desta transição vertiginosa.
- Tecnologia, velocidade e política, o caminho para a histeria coletiva
Movimento e mobilidade intensos e permanentes, a história parece uma tara muito pesada, é preciso aliviá-la. A tecnologia pode ajudar. Da máquina a vapor à eletricidade, da internet à inteligência artificial, tudo é velocidade. A computação quântica fará o resto. Entretanto, a política adapta-se, os regimes autocráticos tomarão conta da eventual histeria coletiva.
- A política é transacional, o curto prazo é um jogo de conveniências
No paradigma do movimento e da mobilidade a política é transacional. Vigora o princípio do individualismo metodológico, o eu e curto prazo prevalecem sobre o nós e longo prazo. No reino das bolhas e dos narcisos tudo se resume a um jogo de conveniências, interesses e cumplicidades de curto prazo que tudo sacrificam.
- A realidade e a verdade não existem, são apenas tempos que o tempo tem
No paradigma do movimento e da mobilidade a realidade e a verdade são assuntos interpretativos, aproximações sucessivas, tempos que o tempo tem. O mundo é, doravante, composto por vários universos paralelos derivados de diferentes velocidades que as redes sociais, as máquinas inteligentes e a IA e ajudam a configurar e a cristalizar.
- A morte do politicamente correto, do centro, do senso e do bom senso
As primeiras vítimas da distopia digital são o centro político moderado, o senso e o bom senso, a ética do cuidado e a empatia pelo nosso semelhante. A polarização política das sociedades não consente que fiquemos a meio da ponte, tudo tem de ser contestado e polarizado, agora e já.
- O serendipismo, o acaso e os efeitos não-intencionais
No paradigma do movimento e da mobilidade acredita-se no determinismo tecnológico, isto é, o acaso e os efeitos não-intencionais também podem ser antecipados e resolvidos pela tecnologia. Ou, como agora se diz, mitigados. De resto, o serendipismo acredita que muitos desses imponderáveis podem trazer inovações positivas. Até lá, no entanto, o risco de colisão e acidente é constante.
- O dispositivo determina o comportamento, o trans e o pós-humanismo
No trânsito para as máquinas inteligentes, a inteligência artificial, os ambientes simulados e a computação quântica, o dispositivo determinará, cada vez mais, o comportamento em direção ao transumanismo e o pós-humanismo. Este determinismo tecnológico vai gerar a confusão entre os fins e os meios, mas as Big Tech vão invocar que a construção social da estupidez não é uma responsabilidade sua.
- A transmutação dos heróis, do herói glorioso ao herói narciso
Nesta grande transição da distopia digital entre os fins e os meios vamos assistir à transmutação dos heróis, do herói glorioso, patriota e nacionalista, até ao herói narcísico e individualista germinado pelas redes sociais de que uma recente eleição presidencial é um excelente exemplo.
- As realidades virtuais, os heterónimos-avatares dos ambientes simulados
Nesta grande transição da distopia digital outra transmutação importante diz respeito à multiplicidade de realidades aumentadas e virtuais onde se conta a germinação de ambientes simulados. Nestes ambientes simulados podemos desdobrar a nossa personalidade, viver várias vidas e divertir-nos imenso gerando heterónimos-avatares.
- O tempo do futuro, entre a perspetiva e a prospetiva
No paradigma do movimento e da mobilidade, o paradoxo é constante, isto é, precisamos de mais perspetiva e prospetiva para evitar o risco de colisão e acidente, mas o sistema operativo não nos deixa tempo bastante para o tempo necessário ao exercício da perspetiva e da prospetiva, aumentando, assim, as consequências perniciosas da distopia digital em movimento.
- A arte, a educação e a cultura ainda podem salvar-nos, se chegarem a tempo
Na sociedade dicotómica e polarizada, o populismo e a demagogia próprios dos regimes autocráticos espreitam, a todo o tempo, a sua oportunidade. As elites aristocráticas minoritárias pregam a democracia representativa formal, mas são sobranceiras e distantes, e perdem para os populistas e demagogos, iliberais e antidemocráticos, que estão mais próximos e comunicam diretamente com as classes médias e baixas. Esperemos, no entanto, que a arte, a educação e a cultura democráticas e participativas disseminadas pelas redes digitais cheguem a tempo de inverter este movimento populista e antidemocrático.
Nota Final
Tudo o que fica dito pode, igualmente, aplicar-se à utopia europeia. A Europa tal como está é mais passado que futuro, já não chega ser uma simples expressão do passado transatlântico, tem de ser a grande esperança do futuro e da nova ordem internacional. Se não for um projeto autêntico de médio e longo prazo, a Europa será engolida pela distopia digital e pelo labirinto da política transacional de curto prazo. Tal como refere o Relatório Draghi o projeto europeu é em nome de uma liberdade real e não de uma liberdade ficcionada. É preciso, no plano europeu dos bens públicos e dos bens comuns, combater a subprodução de externalidades positivas e a sobreprodução de externalidades negativas, em nome do pacto ecológico e de uma verdadeira economia circular. A tecnologia não dita o destino de uma nação. Temos de voltar à política e retomar o controlo da vida coletiva, a tecnologia pode ser direcionada para servir e beneficiar o bem comum.