Espero que os meus caros leitores estejam atentos ao presente abalo no mundo ocidental. Primeiro surgiu a notícia no New York Times, que falou com cem ex-funcionários da Amazon e contou pormenores próprios das zonas mais negras da imaginação de George Orwell: pessoas com problemas sérios de saúde com más avaliações por não aguentarem o ritmo de quando estavam saudáveis, críticas das chefias que põem o mais robusto a chorar publicamente, quotas assumidamente darwinistas de pessoas a despedir em cada ano, denúncias anónimas sobre colegas, incentivo a um ambiente de conflito entre colegas, horários de trabalho que impedem vidas familiares ou namoricos e pelos vistos até se corre o risco de receber um e-mail do chefe a meio dos one night stand possíveis.

As ondas de choque, obedientes, sucederam-se, que afinal a Amazon é um dos pilares da vida moderna. Um executivo da Amazon fez na sua página de Linkedin uma refutação sentida daquilo que vê como calúnia à sua empresa e até o dono e fundador, Jeff Bezos, escreveu um e-mail (que nem tinha nada o objetivo de escapar para os media) afirmando que a Amazon do artigo do NY Times não era a sua Amazon e se faz favor que lhe contassem por mail eventos semelhantes aos espalmados no jornal.

A muito esquerdista Salon não tem largado o osso da malvada Amazon. A um bocadinho menos esquerdista Slate tem sido mais ponderada, questionando se cem trabalhadores podem ser representativos de uma empresa com mais de 150.000 ou se o ambiente de trabalho por lá será pior do que noutras empresas tecnológicas. The Guardian saliva de contentamento.

Eu, fazendo uso de toda a ponderação disponível na minha personalidade, tenho de reconhecer: o artigo do NY Times pôs em causa o meu modo de vida. Foi um ataque quase tão direto aos meus hábitos como o 11 de setembro, quando andar de avião (atividade que eu fazia com frequência por motivos profissionais) de repente se tornou perigoso, com os aeroportos com metralhadoras em cada canto e obrigando-nos a uma panóplia de novos procedimentos de segurança.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

aqui contei como me é prático o comércio digital e a Amazon britânica há muito que é um grande sorvedouro do meu orçamento mensal. Tenho uma compulsão para comprar livros que raia o doentio e é sempre um bom passatempo ir para a Amazon procurar livros de algum escritor que os meus caprichos literários favoreçam no momento, pré-encomendar as novas obras dos meus autores imperdíveis, ou pesquisar a bibliografia sobre determinado assunto. A wish list é quilométrica e raramente não tenho o meu cesto de compras com alguns produtos, à espera do ponto certo para terminar a compra e aguardar que os pacotes comecem a chegar ao meu escritório. As pessoas que não sentem um intenso prazer em receber pelo correio as compras feitas nas lojas virtuais andam a perder uma parte muito saborosa da vida.

É certo que as tentações de infidelidade à Amazon se amontoavam nos últimos tempos. Os prazos de entrega são largos, acabaram-se as entregas grátis e na maior parte das vezes as compras já eram feitas aos vendedores associados à Amazon, que têm quase sempre preços muito mais baixos. Mas aquela força poderosa que é a preguiça impediu-me, até agora, de ir comprar diretamente no site do vendedor.

Mas agora sinto-me tão ressentida como Tony Last na sua prisão amazónica em A Handful of Dust, de Evelyn Waugh (recebido da Amazon em 2005). E estou pronta a juntar-me aos numerosos conjurados que prometem boicote à Amazon.

Bem sei que ex-trabalhadores descontentes não contam toda a história de uma empresa. Eu própria, quando tinha a infelicidade de chefiar outras pessoas, também devo ter originado muitos ressentimentos só por ter manias (exotéricas para alguns) como achar que as tarefas são para serem feitas bem e não compreender de todo incapacidades de cumprir prazos.

Os longos horários de trabalho exigidos na Amazon irritam-me, no entanto também não me decidem. Prefiro trabalhar com pessoas com famílias, relacionamentos, passatempos, interesses, jantares de amigos, reuniões na escola dos filhos, almoços românticos. Não vejo como alguém que só trabalha pode ser criativo a responder às necessidades que os clientes sentem naquela coisa (desconhecida para o workaholic) que é a vida. Mas é verdade que há muitas pessoas que exibem um intenso orgulho por gastarem todos os momentos acordados com a profissão. Deixemo-las.

Ainda assim restam umas tantas objeções intransponíveis. O incentivo ao conflito e à denúncia parecem-me próprios dos tempos maoistas, que não ficaram conhecidos por realçarem a parte risonha da natureza humana. Aunts Aren´t Gentlemen (recebido da Amazon em 2011), dizia P.G. Wodehouse, e a denúncia anónima e a agressividade gratuita também não são de cavalheiros. E – este é o argumento mortal – a Amazon não tem mulheres nos executivos de topo. Se prescinde das mulheres na sua administração e gestão de topo, então também prescinde das mulheres como clientes. (Só mesmo quem apenas conhece o mundo através das paredes envidraçadas do escritório para supor boa política alienar os clientes femininos.)

E agora vou procurar um site que venda livros de auto-ajuda com conselhos para o luto pelo fim das longas relações com lojas virtuais.