É possível que a parceria entre o PS e o Bloco de Esquerda tenha terminado cedo de mais. No Orçamento de Estado entregue ontem pelo Governo não se nota qualquer influência do Bloco. O que é pena. Desta vez, o Bloco tem realmente estupendas contribuições a dar. Sobretudo, na área da sonsice financeira. Basta ver como é que apresenta o plano para aumentar o custo de vida aos seus militantes. É preciso subir as quotas de 15 para 25 euros? Justificar um incremento de 67% feito pelo mesmo partido que quer congelar os aumentos das rendas em 0,43%? Explicar que as rendas ficam no frigorífico, mas as quotas vão para o micro-ondas? É fácil, basta chamar-lhe “Roteiro para o reforço do autofinanciamento”. Viram? É de formulações geniais deste tipo que o PS prescindiu, perdendo boas ideias para baptizar aumentos de impostos e cortes de rendimentos. No fundo, é como se o eufemismo e a perífrase tivessem tido um filho (fora do casamento entre figuras de estilo, claro, pois trata-se de uma instituição burguesa e a família nuclear é das grandes ferramentas opressivas do heteropatriarcado).

Começa logo por ser um “roteiro”. Podiam ter usado “plano” ou “programa”, mas são termos áridos, que tresandam a dinheiro e mostram logo ao que vêm. “Roteiro” é muito mais agradável. Faz lembrar Roteiro das Aldeias de Xisto, ou Roteiro do Alto Douro Vinhateiro, só que com marxistas pedinchões. Remete para passeio na natureza, sestas à sombra de um sobreiro, piqueniques à beira do riacho. Está bem que sai-se de lá com uma carraça agarrada à carteira, mas o que é importante é que se passou um belo dia no campo.

Depois, é um “roteiro” para um “reforço”. Ou seja, parece que é só um aumentozinho. Faz crer que o grosso da contribuição já foi feita, falta só um reforço. Como depois de pagar a conta do restaurante, quando um amigo pergunta se alguém tem umas moedinhas para deixar de gorjeta. A refeição já está paga, falta só o reforço. Além disso, “reforço” dá ideia de medida excepcional, ao contrário de “aumento”, que é para se manter.

Por fim, temos “autofinanciamento”, o golpe de asa deste conceito. Se é “autofinanciamento”, é dinheiro que se está a gastar em si próprio. A nota sai de um bolso e volta a entrar noutro. Não é despesa, é lucro. “Portanto, camarada, estás a dizer que tenho de pagar mais?”, pergunta o militante desconfiado. “Não, pá! Estou a dizer que vais receber mais! Estamos a aumentar o teu financiamento! Não é preciso agradecer, camarada”.

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O Bloco consegue assim justificar um aumento 155 vezes maior para quotas do que o aumento que o Bloco admite para as rendas. Mas não só. Há outro aumento de quotas em perspetiva: de uma, para duas. “Agora está previsto que as distritais possam pedir uma nova quota mensal aos militantes, a somar à anual”. Não é por acaso que uma grande maioria dos artistas são do Bloco. Só pessoas muito criativas conseguem inventar tantas e tão imaginativas formas de desfalque.

Já no mês passado, provavelmente usando o mesmo gerador de aldrabices semânticas, Catarina Martins tinha-se referido assim ao despedimento de funcionários do Bloco: “Há um resultado eleitoral pior, o Bloco de Esquerda tem menos recursos financeiros e portanto reduz a sua estrutura”.

Nesta metáfora, os trabalhadores que se despedem são estrutura que se reduz. Uma pessoa que, de um dia para o outro, perde o salário, é equiparada a uma parede demolida. O partido já não precisa daquele pedaço de alvenaria? Não faz mal, pega-se numa marreta e já está. Mais uma vez, os bloquistas encontram uma imagem muito feliz. Depois de rebentar uma parede, varrem-se os escombros e é como se nunca lá estivesse estado. Não há registo de um murete acampar à frente de uma sede partidária com um cartaz a dizer “Não tenho dinheiro para dar de comer aos meus tijolos!”

Nessa mesma entrevista, Catarina Martins afirma que despedir funcionários por se perderem recursos financeiros não é contraditório com exigir a proibição de despedimentos. Diz: “O Bloco de Esquerda tem defendido que quem tem lucros não pode despedir. Como infelizmente sabe, não é o caso do Bloco”. Só para ter a certeza, googlei “lucro”. Numa definição simplificada, é a diferença entre ganhos e gastos. Ou seja, o Bloco factura menos do que gasta, daí não ter lucro. O que quer dizer que há duas maneiras de voltar a ter lucro. Ou crescem os ganhos ou diminuem os gastos. Como as próximas eleições ainda vêm longe e como não vai ser possível aumentar muito mais as quotas, resta ao Bloco gastar menos. Ora, aparentemente, os esforços do Bloco com a poupança são dirigidos apenas aos salários, uma vez que, pelos vistos, as sedes são para manter. A questão é: os trabalhadores não são mais importantes do que as sedes, Catarina? (Emoji de lágrima). Se largarem as sedes distritais e venderem a sede em Lisboa, não vai faltar dinheiro para salários. Não é menos do que o Bloco exigira a uma empresa. Como é, camaradas?

Mas a verdade é que o Bloco está numa situação periclitante. Se se mantiver esta tendência negativa, corre o risco de desaparecer. O que seria péssimo para Portugal. Ao longo dos últimos 20 anos, o Bloco de Esquerda tornou-se essencial para o país. Ir à falência porque a sua direcção falhou não é opção. O partido não tem culpa da incompetência de quem transitoriamente o dirige. Temos de salvar o BE.

Apenas o Bloco combate a dispersão territorial: os portugueses dos Açores e da Madeira também têm direito a serem olhados de cima com a superioridade moral bloquista. O Bloco é fundamental para o turismo: vem gente de fora só para ver trotskistas em habitat natural. O Bloco suporta muitos empregos, mesmo fora do Bloco: só jornalistas a defenderem ideias do Bloco na imprensa são centenas. O Bloco é grande demais para cair.

A solução é óbvia: é preciso nacionalizar o Bloco. Se é para usarem os meus impostos, que seja para isto.