Pelo menos duas vezes por mês, como bom doente que religiosamente toma os seus medicamentos organizados numa caixinha de metal enferrujado, algum comentador político exige uma demissão, esquecendo que na semana anterior (ou mesmo momentos antes) se havia queixado da existência de uma sociedade cada vez mais crispada e menos conciliadora.

Não interessa se é alguém com responsabilidade política, um estagiário ou um desempregado. Se alguma coisa correu mal, se temos um dedo, se conseguimos apontar para alguém, alguém tem de se demitir e, se essa pessoa não tiver coragem para se demitir, alguém tem de ter coragem para a demitir ou para se demitir se não a demitir.

Pese embora este ritual teatral nos dê o conforto que só o hábito e o familiar nos dão, talvez valha a pena alguém perder algum tempo a tentar justificar as suas sentenças, para que estas não pareçam apenas facciosas, injustificadas ou levianas. Quem quer atuar como juiz do Landsdómur (tribunal criado em 1905 na Islândia para tratar questões criminais relacionadas com membros do governo) deverá pesar as suas sentenças como se juiz fosse. Mesmo que elas pouco ou nada valham para um Governo que já alcançou a imunidade de grupo contra o vírus da responsabilidade política ou contra uma população que não encontra cura ou vacina contra políticos pinóquios, rasteiros e tão astigmáticos como míopes.

Mesmo que seja num mock trial, quem quer que seja que tente fundamentar o seu veredicto numa frase, ou estará enganado, ou produz frases gigantescas. O bom senso obrigá-los-ia, na grande maioria das vezes, a considerar, pelo menos:

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  • A gravidade das consequências dos atos (pense-se em Hassan Diab, primeiro-ministro libanês que se demitiu na sequência das explosões de Beirute, pese embora a sua culpa no incidente seja, no mínimo, bastante remota);
  • A intencionalidade dos atos e a sua relação com o julgado (não tem o mesmo relevo um ato praticado diretamente por um responsável ou um praticado por uma das 700 pessoas que trabalham para ele. Isto é, se ninguém compreenderia que Tim Cook se demitisse só porque eu fui mal atendido numa iStore, como é que toda a gente parece exigir a demissão de um ministro, se um funcionário administrativo espirra para cima de um utente?);
  • A quantidade de erros já anteriormente realizados (aqui o exemplo é tão óbvio, que retira o prazer de ser dado);
  • A reação ao erro e as medidas tomadas para retificação das suas consequências;
  • A vertente pública ou privada das atuações e a sua relação com as posições adotadas (é o caso, por exemplo, do primeiro-ministro Yukio Hatoyama, que em 2010 se demitiu por ter falhado no cumprimento de uma sua promessa eleitoral e do eurodeputado József Szájer, apanhado numa festa gay em clara contradição com as políticas anti-gay defendidas);
  • As consequências da demissão (i.e. haverá alguém mais competente para assumir o cargo? Será oportuna a demissão ou esta poderá ser disruptiva para os serviços tutelados? Fará sentido uma demissão próxima da data de término do mandato?);
  • E o tempo e as circunstâncias dos factos (não será exatamente igual ter Ralph Northam pintado a sua cara de preto para um concurso de dança há 30 anos ou tê-lo feito agora).

Se o juízo deve basear-se num conjunto largo de fatores, estes não têm sempre a mesma relevância, sendo apenas a análise conjunta de todos (e do caso concreto) que a determinarão. Assim, uma pequena e não intencional gaffe que tenha consequências nefastas poderá tanto ser causa bastante para que alguém se demita, como uma atuação intencional com efeitos irrisórios.

As bases da teoria geral da demissão estão lançadas. Quem quiser brincar aos juízes de bancada (ou precise de o fazer por questões de saúde) que as tenha em consideração ou que se demita. E caso não se demita, que o demita quem tem poderes para isso. Ou, então, que se demita a si próprio.