1. Não basta saber é preciso vir. Vir para crer na amplitude do desastre. Visto daqui de Londres e apesar da capital não traduzir a Grã-Bretanha, o Brexit é simultaneamente um erro, um desastre e um calvário. E mesmo que hoje ainda se invoque a argumentação política de Cameron quando então optou (eleitoralisticamente) por convocar um referendo, o gesto, como era arquiprevisível, revelou-se temerário. Revendo hoje o “ontem” político-partidário de David Cameron, a sua avaliação foi de estagiário: o erro não tem perdão, o calvário está em curso e o desastre devidamente anunciado.

Avança-se às arrecuas, dançam-se valsas-hesitações, fazem-se e desfazem-se contas, há gaffes e atrasos inexplicáveis e uma tensão desconfiada nas negociações entre a UE e o Reino Unido. Por vezes parece até que Michel Barnier — o negociador-chefe da União Europeia para o Brexit — põe veneno no seu diálogo com Londres. Mas Londres, mesmo estando possivelmente a fazer essa quota parte de bluff que as mais duras negociações políticas sempre pressupõem e reclamam, responde por vezes com um grau de amadorismo ou impreparação estarrecedores. A dúvida quase surge como legitima: os ingleses estão a tratar do Brexit como uma emergência nacional ou como um vulgar ponto mais na agenda política face ao qual se possam dar ao luxo de hesitar ou se dividir? E sabem o que querem? É duvidoso, pois as próprias circunstâncias políticas de Theresa May são o melhor espelho do imbróglio: 1) a primeira-ministra britânica rege um governo partido ao meio, metade dos seus ministros são visceralmente contra o Brexit e a segunda metade, que é veementemente brexitiana, ainda não perdoou à primeira não o ser também, ou seja, há desunião feroz dentro de casa; 2) a coligação dos conservadores de May com o DUP (partido unionista da Irlanda do Norte) tem condicionado largamente – ou impossivelmente? — as negociações com a UE por causa da situação específica da Irlanda do Norte. O tema é tão delicado que à hora a que escrevo o processo encalhou: à mesa das negociações está a fatal reposição de uma fronteira na ilha da Irlanda, que ninguém quer.

A tudo isto que não é pouco devem ser acrescentados os brutais custos deste processo. Recursos inimagináveis em dinheiro e pessoas que deveriam estar a ser usados para resolver questões cruciais do Reino Unido Reino. Quais? As que se prendem intimamente com o quotidiano dos britânicos, afectando- lhes vidas, empregos e futuro: a desigualdade (inequality) resultante do pós-crise 2008 e a “insustentabilidade” dos gastos com os serviços públicos, especialmente pensões (pensions time-bomb).

Por tudo isto que é muitíssimo, o desnorte e a incerteza que se vivem no número 10 de Downing Street, vive-se com igual fidelidade e constância, cá fora : opiniões convictamente opostas e editoriais igualmente opostos a favor e contra o Brexit enchem dia a dia os media, e noite após noite ,os écrans levam dúvidas e sarcasmos a plateias de ingleses tão aturdidos quanto divididos.

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Dizer divididos é pouco: enquanto arduamente prosseguem as trocas de dossiers com a União Europeia, milhões de “remainers” — e não apenas cabeças de cartaz como Tony Blair – não desistiram: alimentam e acalentam a ilusão de fazer regredir asneira, pondo a esperança ao lume a ver se ela sobe até outro referendo. É suposto haver hoje no Reino Unido mais adeptos do “ficar” e menos do “ sair” , como se ainda fosse possível um “milagre”. Aos olhos da Europa e do mundo as coisas parecem porém seladas mesmo não o estando ainda: a saída da Grã-Bretanha da UE é percepcionada como sendo já de sentido único.

Eis o primeiro desastre que tudo desaconselhava. (O que mostra como a crise é larga, feia e profunda.)

2. É certo que Theresa May não é Thatcher, nem sequer é a Theresa May que se dizia que Theresa May era. Foi o que se arranjou, tempos incertos. Talvez não fosse “a” indicada ou mais prosaicamente não estivesse “pronta” para tão alto voo político. Em vez de ditar o rumo ao abalado Partido Conservador saído da aventura Cameron, pareceu sempre ela própria perdida na escolha do caminho. Capturada por uma espécie de tibieza que sendo porventura ditada pela complexidade da situação e a divisão dos seus pares, mais que por defeito ou incapacidade políticas, tem sido incapaz de exibir autoridade e norte.

Daqui ao segundo desastre foi um passo e o segundo desastre — igualmente dispensável — foi a convocação de eleições pela própria Theresa May. Uma esforçada amadora não faria melhor. Das urnas saiu um enfraquecido e fragmentado lote conservador e o que parecia um facto político improvável há um ano – a perda de pé dos Tories face a um envelhecido partido trabalhista, sem votos nem agenda — transformou-se numa probabilidade: os trabalhistas podem estar de regresso ao palco da política governativa. A desigualdade” acima referida — cada vez mais acentuada, aliás — pode bem ser o motor de arranque para a corrida de regresso á cena. Além de que Jeremy Corbyn fala bem, interpela bem e tem com ele uma muito apreciável fatia de jovens da classe média e média-baixa. Soltou-se como peixe na água na política e galopa nas sondagens. Não é violento, tem postura cordata mas é teimosamente datado e não desdenha do modelo venezuelano. O seu programa aterroriza o empresariado, a banca, o dinheiro, os criadores de riqueza. Na City diz-se sem tropeçar nas palavras que “muito pior que o Brexit seria a vitória de Corbyn”. Eles sabem: os mandamentos radicais do radical Corbyn quanto ao controle sobre os bancos – por exemplo – teriam naturalmente o condão de asfixiar a primeira ou segunda maior praça financeira do mundo. Conhecem-se de cor as consequências, elas não são de todo imprevisíveis. Tal como de resto não o eram no Brexit. (Mas seria preciso, não é verdade? que a natureza humana nascesse outra vez.)

3. Subitamente eis os desastres varridos do ar do tempo por um furacão amoroso. Os ingleses que perdem literalmente a cabeça com a monarquia ,estão numa nuvem cor de rosa: Harry, o príncipe ruivo e meio vadio, pinga amor, preguiçoso, soldado destemido e supostamente pouco amante da monarquia, vai casar com uma “mixed-race, divorced and american actress” (Financial Times dixit) , chamada Meghan Markle. Eis em todo o seu esplendor de clichés e itens, o cardápio do politicamente correcto, gloriosamente travestido de conto de fadas.

Mas a Inglaterra parou. Exit Brexit, adeus chatices. As televisões pareciam que tinham corda, imprimiu-se mais papel, estamparam-se de imediato fotos, reportagens, entrevistas, caricaturas amáveis. E uma torrente de perguntas (“as cunhadas Kate e Meghan dar-se-ão bem ou serão rivais”?); vaticínios esperançosos (“Meghan pode ser a nova Diana!”); apostas (“o vestido de noiva, será resolutamente actual”); apreciações (“Meghan está muito à vontade no mundo de hoje”); convicções (“o casal poderá finalizar o que a Princesa Diana começou, adaptando a monarquia aos requisitos da época”); água de rosas (“quando começará a contagem decrescente para a chegada do primeiro bebé?).

As revistas “sociais” rejubilaram e venderam. Mas o tom de editores e articulistas de jornais como o Daily Telegraph, Times, Guardian, Financial Times, não oscilava na análise e até nalguma quota parte da felicidade. Se bem percebi trata-se da “monarquia moderna”. O casamento trará fôlego à antiga e com isso alentará a própria instituição monárquica, livrando-a, por agora, do temível risco do esmorecimento. Na monarquia “moderna”, os noivos são gente independente que faz pela vida e Meghan até já avisou que “não quis ser uma lady que almoça mas uma mulher que trabalha”. (Pelo sim pelo não, fechou o seu blogue e desistiu da sua obscura carreira.)

Como a monarquia é “moderna” os noivos são simples (sub-entendido: iguais a “nós”) e estão próximos do povo. São aliás tão “descontraídos” que anunciaram o seu noivado aos media como se estivessem “on a casual data at Pizza Express”.

E claro, a noiva, trinta e cinco anos que já terão conhecido maior frescura, será um óbvio e muito bem vindo factor de negócio: cada peça da elegante indumentária que usou agora no primeiro acto oficial foi de tal forma cobiçada que logo esgotou nas firmas e marcas de onde provinha. E ainda a procissão não entrou na igreja.

Em 2010 mais de metade dos britânicos (52%) “pensava” que a monarquia “seria abolida em 2050”. Segundo a empresa YouGov, o ano passado o número desceu para 16% mas dada a excitação vigente e omnipresente que varre por estes dias a Grã-Bretanha, interrogo-me, olhando a media nas bancas, se a percentagem não terá descido vertiginosamente mais uns por cento.

Como perguntava o mesmo FT: “a única questão agora é saber que actriz representará a actriz Meghan Markle neste novo filme de Hollywood?”

Deve ser isto que se chama de monarquia moderna.