Pode pensar-se, ingenuamente, que os novos eventos web summit que irão pontuar no calendário da capital fazem de Lisboa um spot tecnológico e que com isso a cidade se tornou tech. Mentira. Absoluta mentira. O web summit é pontual, foi pontual, será pontual e nada irá acrescentar de novo se, de facto, não formos capazes de criar outras raízes tecnológicas em Lisboa. Lisboa é apenas, e tão-só, uma capital segura e que está na moda. Que beneficia, ou tem beneficiado, da insegurança de outras paragens e que foi (re)descoberta por um conjunto de razões que não são necessariamente associáveis a uma cidade tecnológica.

E não somos uma cidade tecnológica pois faltam-nos muitos dos pilares mais básicos. Não temos experiências, sérias ou a brincar, de car sharing. Não somos uma cidade de veículos elétricos, apesar de alguns incentivos. Não temos bicicletas elétricas. Não temos apps interessantes sobre Lisboa. Ok, há algumas apps mas não passam de mais que banais. Os transportes públicos não nos oferecem free wireless. Os táxis não foram efetivamente modernizados no seu interior. O comércio não integrou as componentes tradicionais com as tecnológicas. Nem os restaurantes. Nem os hotéis. O nível tecnológico do aeroporto não é fantástico. Numa capital tech o wireless, primeiro e fundacional princípio, pilar básico, tem de ser acessível e gratuito em todo o lado. Enfim, se medíssemos o nível web em Lisboa, por exemplo, a coisa não estava, como não está, famosa.

O PIB continuará a crescer à custa do turismo. E o turismo encarregar-se-á de encher restaurantes, hotéis e pastelarias e gastará dinheiro no comércio. Sim, porque este mesmo turismo continua a beneficiar do fator segurança e do facto de, queira-se ou não, Lisboa ser uma cidade fantástica que, repito e sublinho, está na moda (como de resto o Porto). Mas e se quisermos fazer crescer o turismo mas também os negócios web based? E como fazer para que o turismo influencie os negócios web e vice-versa?

Para isso, tudo o que temos hoje não chega. O que seria necessário para termos mais e melhor turismo? Mais cosmopolitismo, melhores transportes? Também mas, perdoem-me a franqueza, precisamos de uma diferença para além das nossas diferenças mais idiossincráticas: a ponte, o rio, Marvila, Alfama, Mouraria e Bairro Alto, luz, clima. Só essa diferença, associada ao clima e à luz, à beleza e à gastronomia, à simpatia e ao bom vinho poderá efetivamente dar-nos alguma sustentabilidade temporal quer no turismo quer nos negócios web.

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Precisávamos, assim e em cima do que temos, de ter uma verdadeira webização da cidade. E de sermos uma montra tecnológica para o mundo. Façam um search cuidado: quantas apps interessantes, sejamos francos, temos sobre Lisboa? Temos apps, de facto, mas muito poucas e, com generosidade e como disse, quase todas desinteressantes. Sem gamificação, sem criação de efeito experiência, sem convidarem à repetição. Devíamos apostar nisto. Como devíamos apostar em ser a cidade mais webizada do mundo ou da Europa. Acessos gratuitos, wireless em todo o lado, acessibilidades várias e muita, muita tecnologia. Nas nossas estátuas, nos nossos museus, nas indicações de ruas, nos jardins, no rio, nas esplanadas, nos hotéis, nos restaurantes. Em todo o lado deveria haver tecnologia. Muita tecnologia. E efeito experiência criado pela tecnologia.

De muppies que falassem por si a cartazes digitais, de pequenas montras tecnológicas a hotéis de charme com tech experiences, de habitação inteligente à integração dos nossos materiais mais nobres, de que é exemplo a cortiça. Precisamos muito, muito mesmo, de uma cidade tech para sustentar as aparições dos próximos web summits e para sermos um ponto de referência de futuro. Sem isso, os web summits não passarão de episódios pontuais que nada trarão a Lisboa.

Por onde começar? Por construir uma verdadeira identidade digital para Lisboa. Um design que estivesse sempre em linha com o digital e que obrigasse a que novas aberturas e novas propostas, da hotelaria à restauração e ao comércio, integrassem tecnologia. Como paulatinamente fossemos mudando a paisagem comercial já tradicional apondo-lhe tecnologia. Seria tão importante como o bom vinho ter um menu digital gamificado, por exemplo. Devíamos aproveitar a IoT para massificar Lisboa com IoT em todo o lado, em todas as coisas, e a comunicar tudo o que temos para portais web. Números de transeuntes, afluxos, passagens, veículos, temperaturas, humidades, pluviosidades, ventos, calorias perdidas entre os pontos X e Y dos vários passeios pedestres possíveis, medidores digitais de tensão arterial, de pulsação, frequências de transportes, horas, zonas quentes, zonas frias da cidade. Não importa que as coisas não funcionem todas bem. Dos transportes a tudo o mais que conhecemos em Lisboa e que de facto não funciona bem. Importa, sim, criarmos em cima do que temos uma identidade tecnológica e um design alinhado com a tecnologia.

E se começarmos por criar uma identidade temos de subscrever, e primeiro fazer, um plano estratégico digital para Lisboa. E temos de ter uma agenda digital, que o mesmo é dizer um conjunto de ações digitais para Lisboa. Temos? Não temos. Infelizmente não temos.

Só conheço obras e mais obras e alteração de fluxos de trânsito, criação de bottlenecks, redução do parqueamento à superfície, inibição dos acessos dos veículos aos centros urbanos, substituição da calçada à portuguesa. Não chega, aliás, não será essa a melhor agenda ainda que, se comunicada e partilhada com os lisboetas, possa ter a sua razão de ser (não foi partilhada e não foi comunicada pelo que basta andar por aí para perceber que ninguém entende o porquê destas obras todas).

Esta agenda “das obras” é a agenda antiga de como criar ou voltar a cidade para o turismo e para as pessoas. É a receita tradicional, convencional, para criar cidades de turismo que, hoje, competem umas com as outras apostadas nos mesmíssimos argumentos: enormes acessos pedonais, ruas fechadas aos veículos automóveis, condicionamento do tráfego motorizado, e por aí fora. Mas fazer isto sem uma belíssima rede de transportes públicos implica apenas irritar os lisboetas. E turistas sem lisboetas parece-me um contrassenso. Qualquer cidade tem interesse porque tem pessoas locais nela. Tem miscigenação. Talvez precisemos de alguns destes argumentos “das obras”, não digo que não, mas mais que isso precisamos de algo novo. Não precisamos de fazer só o mesmo que os outros já fizeram há anos. Precisamos de estar na frente em algum argumento único e de capitalizarmos esse argumento.

Temos um web summit? Ou três? Ou o que for? Então vamos aproveitar para, literalmente, forrar a cidade de paredes de cores digitais. E, nesse caso, estaremos a competir com a nossa street art, que não serão mais os grafitis de outros tempos mas, antes, a integração de elementos digitais com tudo o que já temos. Paredes, panos de tijolo, prédios e zonas inteiras com street art digital. Efeitos de cor, de luz, obras digitais 3D. Verdadeiros grafitis dos tempos modernos. Temos que fugir dos argumentos de outras cidades sem acrescentarmos nada de novo. Se quisermos capitalizar na tecnologia aproveite-se o tempo que temos até ao próximo web summit para o começar a fazer.

Precisamos, igualmente, de um novo logotipo de Lisboa. Com ou sem corvo. A preto e branco ou não. Mas um logotipo digital. E de um marketing digital por todo o lado. Dos produtos comercializáveis aos produtos fixos (ao mobiliário urbano e à arte e paisagem urbana), dos serviços prestáveis, dos preços e tags que usamos, dos canais, das mensagens, da inteligência das coisas, no aproveitamento IoT dessas mesmas coisas e do que elas poderão comunicar. Um exemplo: imagine-se um homem-estátua de rua. Um saquinho de moedas para turista ver e deixar uma. Agora imagine-se o mesmo homem-estátua a medir e a comunicar para um portal a sua posição e os transeuntes que tem a olharem-no. Se ele tiver um medidor de aglomeração de pessoas a assistir… mais pessoas virão quando tiver alguns observadores. Pela tecnologia. São estes pequeninos nadas que precisamos de começar a edificar. E quem diz homem-estátua diz um bar com imperiais a 50 cêntimos e música ao vivo a ser comunicados. Precisamos de nos tornar mais digitais. E ter um marketing muito mais digital.

Lisboa precisa, igualmente, de um motto digital e de uma associação explícita à tecnologia. Uma dinâmica tecnológica contante. Será esta dinâmica que criará uma atmosfera web ao longo de todo o ano. Que fará de Lisboa uma referência para novos lançamentos, para novas comunidades, para localização de novas empresas, novas experiências, para criação de novos ecossistemas.

Os números de circo nos sinais de trânsito poderão continuar. Mas que usem alguma tecnologia para o fazer. Os homens-estátua. Os pequenos teatros. Os pequenos circos. As músicas de rua, de metro. O carrinho das castanhas. O carrinho de qualquer coisa, sim, mas que se comunique a sua posição GPS, que se meça o impacto pelo número de transeuntes e que estejam todas estas iniciativas mínimas presentes na web. Da feira da ladra, onde cada lugar deve estar associado a uma imagem digital, à feira das velharias de Belém. Tudo, de facto, deve ter uma tónica e uma lógica digital.

Sem sermos tecnológicos não me parece que o efeito pretendido seja sustentável. Pelo menos o dos web summit. E o do turismo estará sempre sujeito à sorte da segurança – já que o clima e a luz, esses, permanecerão (espera-se).

Um grupo de amigas minhas lançou uma iniciativa num antigo mercado no Rato, mercado este que foi cedido pela Câmara Municipal de Lisboa a um prazo de dois anos. Fica mesmo atrás (mais ou menos) das oficinas (e stand) da Opel no Rato. Rua estreita mas de acesso facílimo. Nesse mercado há várias lojas que vendem o que resulta das dádivas de várias pessoas. De roupas a quadros, móveis e alimentos, basicamente há tudo. Há pessoas referenciadas pelas Juntas de Freguesia como necessitadas e que sobre os preços praticados, baixos, ainda têm direito a descontos. O dinheiro serve para ajudar carenciados. E tudo funciona em regime de voluntariado. As lojas são designadas de lojas solidárias: Mercado do Rato – Loja Solidária.

Antes do Natal passei por lá para ver como estavam as coisas e comer uma bifana e um caldo verde. Pergunta: alguém sabia que se podiam comer ali bifanas e caldo verde para ajudar pessoas carenciadas, refugiados, entre outros? Alguém sabia que se vendiam roupas, móveis, quadros e mil e um objetos? Poucos ou quase ninguém. Pois bem, comunicar na web uma feira destas é abrir mundo ao Mercado do Rato – Loja Solidária. Às lojas solidárias. O que custa? Pouco mais que nada. E no que resulta? Num spot central e acessível a todos. Numa causa que pode mover lisboetas mas igualmente turistas. Numa bandeira hasteada no mundo digital. Sim, um pequeno mundo digital. Mas um digital que deve ser identitário a Lisboa. E que lhe marque a diferença.

José Crespo de Carvalho é professor catedrático na NOVA SBE – Nova School of Business and Economics. O seu email é crespo.carvalho@novasbe.pt