Com a morte indubitavelmente inútil de uma jovem das nossas na sequência de uma doença em vias de erradicação na Europa do séc. XXI causada pela ignorância, veio a discussão das consequências que a pseudociência traz à vida moderna. Sobre o tema, faço recurso de um artigo que escrevi há mais de um ano sobre o conjunto de falsas formas de conhecimento, sustentadas por universidades cujo nome nos deveria remeter a assuntos muito mais sérios. Recordo como terminava o artigo: “Porque este vírus mata, não tenham disso a menor dúvida”. E como eu detesto ter razão nestas circunstâncias.

Mas hoje quero focar nas culpas que a ciência, socialmente considerada ciência séria, tem no cartório, deixando de lado os centros de estudos sociais e coisas do género. Isto porque o movimento de hippies bem alimentados contra as vacinas viveu durante algum tempo sustentado num trabalho publicado por um jornal de inquestionável prestígio no mundo médico, The Lancet, de dois investigadores cujas medidas de produção académica são impressionantes – uma simples pesquisa no Google Scholar, com o nome AJ Wakefield ou JA Walker-Smith, o revela — numa área longe de estar ao nível das “ciências sociais”, como é o caso da medicina.

A verdade é que o artigo, em si mesmo, é chocante para quem, como eu, não entende nada de medicina. As conclusões, posteriormente refutadas com base na alegação de fraude na experiência, baseavam-se no caso de 12 crianças. Para ser mais enfático, uma dúzia delas. É com dificuldade que consigo entender que os autores alegam que a vacina do sarampo, papeira e rubéola provocou a paragem de algumas funções anatómicas. Mas se há coisa que entendo um pouco, ou pelo menos gosto de pensar que sim, é de matemática e 12 casos não significam nada. Aliás, não consigo entender como é que a comunidade científica, neste caso ligada à medicina, consegue aceitar uma relação de causa efeito com base em 12 casos, havendo dezenas de milhões de crianças a ser vacinadas no mundo. Mais ainda, que esta possa ser veiculada para o mundo como facto científico, independentemente de a experiência ter sido fraudulenta ou não.

A ciência tomada como séria funciona numa espécie de economia paralela onde as pessoas colecionam artigos e citações de artigos. Os artigos significam que as pessoas trabalharam e que alguns dos seus pares, outros investigadores, acharam o trabalho digno de ser chamado científico. As citações dos artigos significam que os outros investigadores espalhados pelo mundo reconhecem o caráter inovador dos artigos ao ponto de dizerem que partiram dali para a frente. E chamo-lhe economia paralela porque o valor do trabalho não é reconhecido pela economia envolvente, mas apenas pela comunidade de pares. No fim, um cientista de relevo é alguém que produz muito com muito impacto e isso traduz-se em salários melhores nas instituições que os contratam.

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Mas não deixa de ser uma economia, com tudo o que isso implica. Os cientistas tentam publicar nos jornais com mais impacto para terem mais citações. O The Lancet tem, em média, cerca de 26 citações por artigo, o que é admirável em qualquer ramo da ciência. Mas isto funciona nos dois sentidos, os jornais procuram ter os cientistas mais influentes a publicarem lá porque isto também atrai mais cientistas. O resultado, apesar da aparente lógica, é bastante desviante, no sentido em que os nomes que se colocam na autoria do artigo são, tipicamente, determinantes na decisão da publicação. Quem tem mais citações publica com mais facilidade e, por isso, tem mais citações. Mas a coisa piora, porque estas publicações de grande impacto usam desse estatuto para impor esta espécie de oligarquia do paper, fazendo com que as revisões dos pares não sejam cegas, isto é, quando as pessoas que avaliam os artigos estão à procura de defeitos no que está escrito, têm sempre presente que aquele artigo foi escrito por senhor professor de tal, Knight of the British Empire, originário da universidade do top 10 e honrando o editor de ter o seu número de telemóvel gravado.

Esta economia do paper é, naturalmente, opaca ao comum cidadão que continua a achar que os grandes feitos da ciência surgem do valor intrínseco que as descobertas trazem, porque aquilo que conhecem é que Einstein produziu as maiores maravilhas do conhecimento humano e era só um, ignorando todos os outros que não tiveram a sorte e o talento de acertarem naquele assunto que faz a primeira página dos jornais, como aconteceu com o génio alemão.

Por tudo isto, a tentação de fazer algo que salte da fechada economia do paper para o mundo do homem comum, para a economia em geral, é enorme. Lembro-me de um caso semelhante a este das vacinas cujo impacto nos media chegou até aos jornais portugueses, tal o destaque dado pelos media globais, como a CNN ou a BBC. O caso prendia-se com um estudo publicado na PNAS, Proceedings of the National Academy of Sciences, dos EUA, uma publicação considerada a mais prestigiada entre as que são multidisciplinares, a seguir à Nature e à Science.

O estudo em questão pretendia demonstrar que existe uma relação inversa entre o tamanho dos testículos do homem e a sua capacidade de ser um pai atencioso. A razão pela qual o assunto mereceu tanto destaque nos media regulares continua para mim um mistério, mas despertou-me a curiosidade por lembrar uma cena famosa de um filme de Mel Brooks em que alguém aferia manualmente o peso da genitália de vários homens em fila. E fui ler o artigo para indagar do método de medida testicular usado no estudo, porque não me saía da cabeça a imagem de um cientista de bata branca a avaliar o volume dos órgãos de uma fila de homens. Deste método de medida não consegui entender (deve haver um método standard…), mas percebi que as conclusões se baseavam em 70 casais e, se a curiosidade da medida do volume testicular era grande, rapidamente se tornou irrelevante quando entendi que a medida da capacidade de ser um pai carinhoso se baseava num questionário às 70 mães cujas experiências, obviamente, se restringiam a cada um dos 70 maridos. Como deve imaginar, em termos estatísticos, 70 tem o mesmo valor de 12. Nenhum.

Sem qualquer interesse abstrato sobre o assunto em si mesmo, não era difícil entender que tudo isto é um disparate pegado, sem qualquer sentido e sem valia nenhuma. Mas foi publicado e o facto é que o artigo saiu para o mundo do homem comum, provando que se tiver uns testículos pequenos é um pai extremoso.

Felizmente para todos nós, daqui não surgiu um movimento de pais a exigir que aos seus filhos sejam aplicadas terapias de redução testicular. Mas olhando para os movimentos das vacinas, este facto deriva puramente da sorte porque, como diria o outro, ao contrário do universo, a estupidez humana não tem limite. E não vou entrar pelas publicações de cientistas “sérios” negando o aquecimento global ou os malefícios do tabaco.

Aquilo que a minha experiência diz, posso estar errado, é que seria impossível a um estudante de doutoramento publicar quer um, quer outro artigo, nas publicações em causa. Porque, simplesmente, está demasiado baixo no tecido social formado pela economia do paper e a sustentabilidade das conclusões parece-me ridícula em qualquer circunstância. O que nos diz é que estas publicações surgem de um desvio naquilo que seria a pura busca de conhecimento por uma comunidade honestamente empenhada em tal. As acusações de fraude nos resultados no caso das vacinas parecem-me apenas um detalhe.

Em conclusão, se bem que a pseudociência abre o caminho para todo o tipo de disparate e que o disparate pode matar, a verdade é que a comunidade científica, e a economia que forma, dificilmente sai incólume nesta história, particularmente no caso dos movimentos anti-vacinas e na morte desta jovem. E enquanto aquela economia paralela sobreviver é bem possível que outros casos, noutros domínios, venham a provocar mais vítimas inúteis.

PhD em Física, Co-Fundador e Partner da Closer