A higiene, primeiro: vamos deitar o rótulo para o lixo. Tenho uma boa regra para guiar a minha curiosidade sobre estes tempos interessantes: sempre que leio ou ouço a palavra «populismo» – não sei quantos faz «populismo», não sei quem é «populista» – paro de ler ou ouvir. Ali, penso eu, não vou aprender nada; quem invoca o populismo está a cegar-se voluntariamente. Por mim, queria ver se via.

Falar de «populismo» é uma tentativa de meter sob o mesmo chapéu realidades muito diferentes: Brexit, Trump, o despedimento de Renzi, a ascensão de Le Pen e as propostas «irrealizáveis» de Fillon (hélas!), a alternativa alemã, os medos austríacos, o protesto holandês, os avisos tão razoáveis de Viktor Orbán sobre a identidade europeia e cristã da Hungria. Esses movimentos devem ser entendidos sobretudo como sintomas de um descontentamento que tem dolorosa e justa consciência de si, mas não sabe ainda para onde ir. Varrê-los para dentro de um balde rotulado de «populismo» pode sossegar passageiramente, mas é estéril, é o mesmo que abster-se de reflectir sobre o que se passa.

E o que se passa é que o Mundo mudou, que está em curso um aggiornamento ou uma revolução tão importante como a revolução industrial. Aos sustos e aos tropeções vamos perguntando para onde havemos de ir a partir daqui.

Quem cozinhou estes «tempos interessantes»? Após a queda do Muro de Berlim, em 1989, e a derrocada do mundo socialista, a esquerda foi-se rendendo à falência do seu modelo económico, e entregou a economia à direita – quando não a perfilhou mesmo, com maiores ou menores distúrbios cólicos. A esquerda aceitou o mundo das empresas e mercados, mas não retirou de cena, antes estabeleceu o seu bastião derradeiro no mundo da cultura e dos costumes. Com descaso ou presunção, a direita entregou-lhos de mão beijada, juntando-lhes o bónus do ambiente, enquanto tratava de gerir economia e finanças num mundo globalizado e competitivo.

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Foi em resultado desta espécie de tácito tratado de Tordesilhas que floresceram a globalização e inovação, de um lado, e o politicamente correcto e as medidas «fracturantes» ou de desarticulação de sociedades, de outro. A evolução paralela e sem reais contrapesos destes dois mundos divididos chegou a extremos que produziram o descontentamento actual.

A revolta da «iliteracia supraveniente». A globalização significou fácil acesso a, ou liberalização de movimentos de capitais (e investimento), de mão de obra (e cérebros), de hardware, e do comércio. Deve-se à globalização um enorme salto de inovação e progresso tecnológico, e o brutal decréscimo da percentagem da população mundial vivendo em nível de pobreza – de mais de 35% em 1990 para menos de 10% em 2015. Mas a interacção de liberdade, inovação e progresso tecnológico teve os seus subprodutos: o desaparecimento de profissões e centros produtivos, o desemprego, a exclusão, o descontentamento. Gente útil e produtiva viu as suas ocupações tornarem-se, subitamente, supérfluas ou arcaicas. De membros da população activa em determinado momento, viram-se transformados em iletrados da nova era. Acresce que o progresso social tornara inaceitáveis, hoje, condições de vida que há poucos anos não seriam consideradas dramáticas. A globalização interage ainda com a inovação para criar um tipo especial de desigualdade a que eu chamaria virtuosa, mas que a esquerda usa para fazer demagogia: a desigualdade dos grandes inovadores, de revolucionários como Gates, Zuckenberg, Bezos ou Jobs, multimilionários porque num mundo globalizado esse era o resultado inevitável das suas invenções revolucionárias.

Fossem as queixas dos deserdados mais ou menos legítimas, o certo é que ninguém as ouviu realmente até elas se imporem eleitoralmente nos EUA.

A revolta dos politicamente corrigidos. Sem gastar muito do seu latim com a economia e as finanças (para além de episódicos clamores contra «os especuladores» e «os mercados», ou de proclamações do enésimo fim do capitalismo ao peso das suas «contradições»), a esquerda encontrou na globalização um terreno fértil para explorar as suas novas bandeiras. O multiculturalismo e o relativismo cultural pareciam adequados a um mundo sem fronteiras; o mesmo para a liberalização de costumes num ambiente de contactos internacionais, turismo, relações pessoais e comerciais a todos os azimutes. E, sendo o mundo um só e de todos, as boas práticas ambientais pareciam um bom serviço prestado, sem excepção de destinatário algum.

Mas a esquerda quis usar essas bandeiras como instrumentos de domínio. Compostos num ramo de correcção política, multiculturalismo, relativismo e liberalização de costumes (ou «questões fracturantes», expressão bem mais reveladora) procuraram estabelecer uma tirania comportamental e impor ideias e práticas que eram estranhas e ofensivas das crenças e valores identitários das sociedades ocidentais e cristãs. A recusa de integração por parte das crescentes comunidades islâmicas e a vaga de terror islâmico apenas apimentaram e deram urgência a uma revolta defensiva. Quanto ao ambiente, ele serviu demasiadas vezes de arma de arremesso contra as economias liberais.

As respostas. Entre o sonho de Bill Gates de um computador em cada casa e a sua concretização correram menos de 30 anos. Os pulos e avanços gigantescos no mundo da informática, das comunicações, da automatização e da robotização, dos transportes, da medicina provocam comoções e desequilíbrios económicos e sociais agora, e saldar-se-ão por um mundo novo, talvez em menos de duas décadas.

Entre as propostas para encarar esse novo mundo, as menos interessantes são as de Marine le Pen – de regresso a um mundo velho, estatizado, alheio à concorrência, só possível sobre as ruínas da União Europeia – ou as da esquerda romântica ou infantil de Benoît Hamon – proponente do assistencialismo terminal. É pena que, ao que parece, Fillon não venha a poder esclarecer-nos sobre se o seu programa era de real mudança ou de mudar o bastante para ficar como está.

O que torna Trump interessante é, em primeiro lugar, ele representar a primeira tentativa de ouvir os deserdados do progresso e de repor os equilíbrios capitalistas, mediante a devolução da tónica ao familiar conceito de Estado-nação, de interesse nacional, de «a minha sociedade primeiro».

O segundo ponto que torna Trump interessante (e muito contribuiu para a sua eleição) foi a novidade de, contra os muros de pudor ou sujeição erigidos pela correcção política, ele abordar sem meias palavras, frontalmente e com brutalidade, os riscos, os medos, a raiva e o desconforto da civilização ocidental e cristã (ocidental e cristã): a desordem, o relativismo, o multiculturalismo, a tolerância da intolerância, as politicas socialmente fracturantes, a imigração descontrolada, o perigo e o terror islâmico.

Mas, por conter elementos contraditórios, a administração de Trump estará sempre sob vários fogos: o dos defensores da globalização, que atacam o proteccionismo; o dos liberais que franzem o sobrolho a um megaprograma de obras públicas, o qual agravará défice e dívida, embora aplaudam a desregulamentação e a descida de impostos; e o da esquerda, que compreendeu bem que as suas bandeiras têm no novo presidente um poderoso inimigo e porta-voz de inimigos (basta ver o obtuso rasgar de vestes que vai nas redacções de televisões e jornais portugueses para aquilatar do tom).

É muito provável que, numa primeira fase, a reforma fiscal, o investimento em obras públicas, o proteccionismo, a tónica nas relações bilaterais (as relações com o Reino Unido de Teresa May servirão de excelente termómetro para esse tipo de moderação da globalização), reponham a taxa de crescimento americana em níveis chineses. A falta do efeito catalisador da globalização far-se-á sentir a médio prazo, o que exigirá nova busca de equilíbrio, mas por essa altura a ordem mundial estará muito mudada, provavelmente para melhor, embora não necessariamente.

E Portugal? Portugal será um magnífico local de observação. Aqui, no mundo dos dependentes do Estado, na terra dos afectos e do empastelamento político e económico, aqui no refúgio do último partido estalinista europeu – aqui, no atraso e na cepa torta, em suma, longe dos riscos, mas das recompensas, também – pode-se assistir sentado ao progresso mundial.

José Mendonça da Cruz é jornalista e editor.