A «smartificação» do território

A «smartificação» do território inscreve-se no movimento geral de digitalização dos objectos (naturais e culturais). Por isso, a nossa veemente interrogação: e quando o “aparato digital” tomar conta do território como se apresentará a ocupação do território, com mais stock ou mais fluxo de população?

Eis uma pergunta verdadeiramente intrigante para o próximo futuro. Vem aí a “indústria dos objectos conectados”. Doravante, podemos fazer “plantações sensoriais” para conectar estes objectos, isto é, tudo será smart, mais tarde ou mais cedo: a cidade, a habitação, a fábrica, o hospital, o aeroporto, a universidade, o centro comercial, mas, também, o campo agrícola, a empresa pecuária, a floresta, o parque natural, etc.

Já hoje, de resto, no domínio da agricultura, os avanços tecnológicos são imparáveis, os sensores e os agribots, estão por todo o lado. Eis alguns exemplos ligados à agricultura de precisão, a empresa agrícola 4.0: a gestão remota da rega, a monitorização das culturas a partir de imagens aéreas obtidas com drones, o cálculo algorítmico do índice de vegetação por diferença normalizado (NDVI), as câmaras de vigilância nos estábulos e vacarias e os robots de ordenha e alimentação, os chips nos animais para acompanhamento do seu ciclo de vida, os veículos autónomos como máquinas agrícolas e tractores, a sensorização da floresta (os olhos e os ouvidos das árvores) e as câmaras térmicas (os olhos nocturnos dos bombeiros). As imagens por drone das zonas com maior acumulação de matos, os robots para fazer o ataque a incêndios, os modelos computacionais para a elaboração de cenários de intervenções e as aplicações em smartphones para uso de agricultores e bombeiros, etc.

Este pequeno resumo ilustra bem o que poderá ser o campo do futuro e o futuro do campo, de acordo com um certo determinismo tecnológico. Se a esta “plantação-conexão digital” juntarmos a constelação tecnológica formada pelas nanotecnologias, as biotecnologias, as ciências da vida, do solo e da água e as indústrias da alimentação, teremos seguramente uma ocupação do território muito diferente da actual, com menos gente in situ e mais gente ex situ ocupada em tarefas de vigilância, programação, planeamento e controlo à distância.

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Dito isto, a grande questão de sociedade parece ser, então, a seguinte: depois de um primeiro êxodo agrícola promovido pela industrialização e a urbanização (a 1ª ruralidade), estaremos nós na iminência de desencadear um “segundo êxodo agrícola” com a «smartificação» do território, agravando todas as condições relativas ao despovoamento e desertificação das chamadas áreas de baixa densidade ou, pelo contrário, há uma baixa densidade virtuosa que a «smartificação» pode ajudar a conceber e construir?

Esta questão é tanto mais pertinente, quanto se discute, agora, o impacto das alterações climáticas e dos fogos florestais, bem como os modelos de exploração agrícola e florestal que devem ocupar de forma ordenada o território, tal como nos ensina o arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles, quando se refere ao “organicismo da paisagem global”. O nosso receio é mesmo este, ou seja, que “a «smartificação» casuística não saiba respeitar o organicismo da paisagem global”. Vejamos algumas questões fundamentais a este propósito.

1. As lógicas bioprodutivista e agroecossistémica

A «smartificação» do território consente, digamos, esta bifurcação, uma vez que ela depende das nossas opções produtivas, mas a lógica bioprodutivista é claramente hegemónica e é aquela que melhor se adequa aos algoritmos da «smartificação». Seja como for, é importante afirmar que a «smartificação» não é incompatível com a lógica agroecossistémica, para além de permitir um rational do emprego rural muito mais favorável aos territórios. De resto, há aqui uma enorme margem de progresso em matéria de investigação-acção.

2. «Smartificação» e capitalização da agricultura

Temos muitas dúvidas de que a fase da «smartificação» do território, e da agricultura em particular, pela capitalização e conhecimento técnico que implicam, seja uma tarefa de “proprietários, rendeiros e explorações agrícolas tradicionais” para usar o eufemismo corrente. A «smartificação» da agricultura já está em curso, de forma difusa e selectiva, mas os agribots não se compadecem com a agricultura tradicional, antes exigem uma agricultura bioprodutivista muito mais capitalizada. O mais provável é que este investimento seja realizado por “agentes exteriores” ao território em questão. De resto, não se trata apenas de investimento, mas, também, de uma nova conformação do sistema produtivo aos novos utilizadores, o que poderá ter algumas implicações ecossistémicas.

3. Um ecossistema territorial inteligente

Em terceiro lugar, a «smartificação» de um território vai muito para lá da «smartificação» da agricultura, é uma tarefa muito exigente em matéria de programação e planeamento regional e supõe a construção de um ecossistema inteligente não apenas para atrair uma nova geração de empreendedores mas, também, para criar uma mesoeconomia mais colaborativa e cooperativa orientada para novas configurações territoriais, por exemplo, a criação de territórios-rede e actores-rede com determinadas características estruturais e sociais, por exemplo, na organização de novos mercados de trabalho mais colaborativos.

4. O organicismo da paisagem global

Na sequência do tópico anterior, não basta o determinismo tecnológico de uma «smartificação» do território feita de sistemas de informação geográfica (SIG e GPS) e uma série de aplicações em smartphones para fazer rodar uns agribots e uns drones de vigilância do estado das culturas, embora, nesta fase, seja essa a tendência. O organicismo da paisagem global, a harmonia dos seus elementos constitutivos e o bem-estar das populações residentes estão para lá da “inteligência artificial” e só nos parecem possível no quadro de “territórios-rede desejados” e administrados por um actor-rede dedicado e dotado de capital de conhecimento suficiente para o efeito.

5. As redes digitais distribuídas

A «smartificação» da agricultura de precisão conduzida numa lógica bioprodutivista obedece geralmente a uma rede digital centralizada de acordo com uma cadeia de comando bem desenhada, quantas vezes estranha ao próprio território; por outro lado, a lógica agroecossistémica e o organicismo da paisagem global obedecem a uma rede digital distribuída (uma rede peer to peer, P2P) que requer uma “outra cibercultura” muito mais próxima das comunidades locais de vizinhança e proximidade.

6. Os novos gestores da «smartificação» da paisagem

A “paisagem global” de Gonçalo Ribeiro Telles é um mosaico multifuncional complexo onde cabem a conservação da natureza, a produção de alimentos frescos, as amenidades agro-turísticas e a gestão das áreas de paisagem protegida, de acordo com critérios técnicos, mas, também, estéticos e éticos. Isto significa que, no plano dos processos e procedimentos relativos aos sistemas agroecológicos, a «smartificação» pode também contribuir para uma profunda revolução na gestão integrada das unidades de paisagem e áreas de paisagem protegida, das empresas agrícolas e florestais e das amenidades e serviços ambientais que, conjuntamente com os núcleos populacionais, formam a estrutura básica do ordenamento do território e da paisagem.

Sinais Distintivos, Smartificação e Desenvolvimento Territorial

O mosaico agro-silvo-pastoril e paisagístico do montado, os sítios da rede natura 2000 e as áreas de paisagem protegida, a biodiversidade e os serviços ecossistémicos, o turismo e os percursos de natureza, as denominações de origem protegida (DOP), as apelações de património imaterial da UNESCO, a “Reserva de Biosfera”, as alterações climáticas e as medidas de mitigação e compensação respectivas, os campos e as estações arqueológicas, a cultura tradicional e as paisagens literárias, são dez “sinais distintivos territoriais, SDT” que podem contribuir decisivamente para a construção da iconografia de uma região, a sua marca impressiva territorial.

Sabemos, porém, que há um “tráfico crescente” destes sinais. Corremos para identificar e delimitar os sinais distintivos de um território, mas, logo de seguida, corremos para exportar esses sinais distintivos para a “cidade universal e cosmopolita”, a cidade onde todos os sinais podem ser visualizados em grande escala (turistificação). Neste sentido, é muito interessante observar o que irá passar-se com os espaços rurais, mesmo os mais remotos, que nós julgávamos imunes a este movimento geral de contaminação, imerso num caldo cosmopolita de “ambientalização, turistificação e culturalização” que, hoje em dia, o universo digital e as redes sociais disseminam à velocidade da luz.

Com base nos sinais distintivos territoriais selecionados podemos aspirar a desenhar um território-rede com inteligência colectiva própria. Doravante, teremos, também, mais cidade no campo e mais campo na cidade. O actor-rede deste território-rede será o protagonista principal desta nova inteligência colectiva e de uma identidade em construção a partir dos seus sinais mais emblemáticos e significativos. Este processo cognitivo do território-rede é, como já dissemos, designado por nós de “«smartificação» do território.

Como sabemos, uma grande parte da contribuição dos SDT para o desenvolvimento territorial faz-se por intermédio da chamada “turistificação do território”. Com os efeitos perversos que são, também, conhecidos: a gentrificação, a liquidificação e a culturalização (o kitch e o pastiche). Por exemplo, as denominações de origem protegida (DOP) como, de resto, outros sinais distintivos territoriais, não escapam a este movimento geral de turistificação. O que importará promover e acompanhar doravante é a coabitação feliz entre todas as contribuições e, no final, congratularmo-nos com o facto de que “o todo é maior do que a soma das partes”, por exemplo, que o “Alentejo DOP” é maior do que a soma das DOP do Alentejo. Uma comissão promotora pode ajudar nessa tarefa, criar um princípio de identificação e procurar os seus sinais mais distintivos e indagar se se trata de um território-desejado.

Os sinais distintivos são “informação bruta” acerca de um território. Se esse território reunir as características de um território-rede essa informação pode ser recolhida e tratada em seu benefício. O grande desafio desta nova fase é uma “smartificação inteligente” do território como “paisagem orgânica global”, como “território-ser vivo”, pois estamos convencidos de que a «smartificação» não é incompatível com a lógica agroecossistémica. De resto, o ator-rede é um ator inteligente que não confundirá plantações de árvores com floresta, engenharia florestal com silvicultura, culturas transgénicas com agricultura, animais clonados com pecuária, operações fundiárias com engenharia biofísica, arranjismo verde com arquitectura paisagística, esverdeamento de culturas com prestação de serviços ecossistémicos e gestão do sistema de produtos com gestão dos produtos do sistema. Este elenco de situações é, só por si, um grande programa de investigação-acção a realizar pelas futuras “redes digitais distribuídas” que são, já hoje, o instrumento fundamental de «smartificação» do território e da futura economia e sociedade colaborativas. As empresas start-ups que criam plataformas tecnológicas e aplicações informáticas são, na narrativa dominante, o agente principal destas redes digitais distribuídas e aqui a imaginação não tem limites.

Notas Finais

É fundamental, porém, deixar dois avisos à navegação. Em primeiro lugar, vamos para o sexto exercício de programação dos fundos estruturais europeus (2020-2027) e ninguém parece interrogar-se sobre as razões pelas quais as assimetrias regionais e territoriais se agravaram em quase trinta anos de investimento local, rural e regional. De cada vez que há um “período de ajustamento”, por razões de défice ou de dívida pública, assistimos a uma desvalorização dos activos do território e a uma forte depreciação dos investimentos realizados (e já nem falamos dos incêndios florestais). Este será o nosso principal problema, agora e no futuro, ou seja, a destruição de tecido produtivo e de tecido social sempre que acontece um “período de ajustamento severo”. Com um país extremamente endividado e com o elevado custo de oportunidade do “investimento em interioridade” não haverá política de desenvolvimento territorial que resista ao stop-and-go da política de ajustamento macroeconómico. Estamos, sobretudo, a pensar nesse mar imenso que é o “grande país do interior”, nesses “concelhos-lar” do rural remoto que crescem todos os dias à míngua de esperança e gente empreendedora.

Em segundo lugar, os territórios mais remotos e hostis são um desafio à imaginação tecnológica e digital e aguardamos, a todo o tempo, que as universidades, os centros de investigação e as start-up mais ousadas sejam capazes de nos trazer novidades na forma de ocupar estes territórios. Todavia, à “nova economia imaterial”, para fazer prova de vida, não bastam as comunidades online criadas de geração espontânea em espaços de coworking ou fablab municipais ou cooperativos. Também não bastam as startup geradas em incubadoras e aceleradoras, que aí vegetam sem um mínimo de sustentabilidade. Há, de facto, um longo caminho a percorrer entre o conforto de uma rede digital gerida por uma comunidade online e o desconforto de um problema real gerido por uma comunidade real, municipal ou associativa, já para não falar da qualidade do actor-rede que administra a rede digital distribuída.

Quer dizer, teremos de fazer, rapidamente, uma revisão da matéria dada no que diz respeito aos espaços de coworking, os fablab, as incubadoras, os centros de investigação, as associações de desenvolvimento local, que têm sido até agora os locais privilegiados para fazer nascer estas redes distribuídas e perceber melhor o lado virtuoso da baixa densidade e as razões para tão baixa performatividade e efectividade destes instrumentos de intervenção no território.

Professor da Universidade do Algarve