No que aos abusos sexuais na Igreja em Portugal diz respeito, há claramente um tempo antes e um tempo depois da Comissão Independente. E senti bem como os ventos mudaram e como se progrediu, pelo menos nalgumas dioceses. E é também notório que as Comissões Diocesanas de Protecção de Menores, nomeadas por ordem do Papa Francisco, serão, no futuro, as instâncias de eleição para um trabalho de proximidade nas dioceses para acolher as vítimas e as denúncias de eventuais abusos cometidos por clérigos ou agentes pastorais de qualquer movimento ou associação ligada à Igreja diocesana. Um trabalho de formação e planos de promoção, de protecção e cuidado têm de ser continuados e aprimorados, onde já algo se realizou, ou iniciados sem demora, onde ainda nada se fez. E caberá às Comissões pôr esse plano em marcha, podendo recorrer à ajuda de grupos que já fizeram reflexão, trabalho e até manuais sobre estas matérias.

Depois da apresentação do relatório da CI houve um momento de choque, tristeza, revolta, vergonha, para uns. Para outros, um deslumbrado endeusamento do trabalho da Comissão. Isto logo num primeiro tempo, apesar das quase quinhentas páginas do documento. Fizeram-se afirmações absolutamente precipitadas e infundadas, como agora, com o assentar da poeira, estamos a verificar. Temo estes movimentos excessivos que podem virar, em pouco tempo do cem para o zero. Curiosamente, não são muito diferentes os que empolam demasiado e os que, em sentido contrário, esvaziam e pretendem deitar tudo fora. Não podemos negar os erros metodológicos, a exposição exagerada e chocante de histórias concretas de vítimas que desconhecemos se autorizaram a sua divulgação (para quê? que acrescentou?… ), os muito poucos testemunhos presenciais, por oposição aos muitos inquéritos online anónimos. E sobretudo, a afirmação da lista dos mais de cem abusadores no activo que já se provou ter sido um grande engano. E que temo possa servir para descredibilizar totalmente o trabalho da Comissão. O que seria um grande prejuízo para todos, mas principalmente para as vítimas e para a Igreja que encomendou e pagou este labor de mais de um ano de toda uma equipa, liderada por Pedro Strecht, pedopsiquiatra competente, respeitado e dedicado. (Se fosse hoje, pergunto-me se ele escolheria os mesmos colaboradores… ). É interessante observar a diferença de comportamentos dos vários intervenientes desde a apresentação pública do relatório. O silêncio, diria o desaparecimento, do actor principal, Dr. Pedro Strecht e todo o ruído de outros que se têm desdobrado em declarações quase diárias, como se lhes competisse dirigir os passos que a Igreja tem de dar por ela e que só a ela pertencem.

Sim, é preciso recentrar o foco, a atenção e o cuidado nas vítimas. E isso implica dar-lhes a possibilidade de serem acolhidas e tratadas, se o quiserem, por técnicos acessíveis, credíveis, motivados e com provas dadas em termos clínicos, quer da Psiquiatria quer da Psicologia, para um trabalho concertado competente. Que a Igreja tem obrigação de organizar, proporcionar e pagar. Os melhores disponíveis que for possível reunir em cada diocese, independentemente da crença de cada um – católicos, agnósticos ou ateus, juntando uma espécie de bolsa nacional de referência. Não será difícil. É pôr mãos à obra rapidamente, que se faz tarde. Remeter para hipóteses de SNS é re-vitimizar as vítimas de forma vil. Quem tem de frequentar os serviços públicos de Psiquiatria sabe das dificuldades enormes, dos tempos de espera, das consultas anuais, mesmo no caso das patologias mais graves. E da escassez gritante de psicólogos clínicos, treinados a trabalhar com a Psiquiatria. Fazer um contrato com a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) parece-me uma solução tão preguiçosa quanto aparatosa por parte da Igreja. E, com todo o respeito pela instituição e por quem lá trabalha, a APAV tem outros propósitos e outra população alvo, para além de lutar também com falta de profissionais.

É claro que pode haver vítimas que queiram escolher fora desta bolsa e têm todo o direito a fazê-lo. E a Igreja só tem de pagar a conta. Mas os que quiserem, escolherão, dentro da bolsa, na sua diocese ou noutra, por questões de maior discrição e anonimato.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Dizer, à partida, que as vítimas não confiarão nos nomes propostos pela Igreja é não conhecer a realidade das vítimas. Nem da Igreja. Algumas haverá, com certeza, e terão todo o direito e motivos pessoais para desconfiar. Mas muitas, não só continuam crentes, como integradas na Igreja ou com vontade de se reaproximarem dela e até de poderem ter também acompanhamento e reparação espiritual. Que também a Igreja deverá proporcionar, com sensibilidade e bom senso. Também para isto há padres com mais perfil e competência.

No que aos abusadores diz respeito, é necessário proporcionar-lhes acompanhamento psiquiátrico e psicológico, que deverá ser sempre supervisionado, longo e feito por quem tem conhecimento, interesse e prática nesta área, que é um nicho bem restrito da Saúde Mental, onde há muito pouca gente preparada, atendendo à pequenez do nosso país. Mas gente disponível que irá colaborar, com certeza. Assim haja vontade de pôr em marcha o que urgia organizar, desde que se começou a encarar a problemática dos abusos na Igreja de frente, como algo inadiável. E que este movimento possa contagiar outra áreas da sociedade civil, onde está quase tudo por fazer ou mais ou menos adormecido, desde o escândalo Casa Pia.

Para que haja cada vez menos vítimas. E as que infelizmente irão continuar a surgir, que possam ter processos menos dolorosos, porque sinalizados, validados e devidamente tratados mais precoce e eficazmente. Mesmo assim, sabemos a devastação, os estragos irreparáveis em cada corpo afectivo, sexuado e espiritual que é abusado. É mau demais. A tolerância tem de ser zero.