E de repente, o meu Avô está nos números do dia. Mais um número numa longa lista de mortes.

Torna-se real quando toca a nós.

Já fui negacionista, já acreditei que só acontecia ao outros, era um exagero, uma trágica comédia, que o melhor era tornar-me imune aos números, imune à realidade, imune às notícias, até que me apanhou. Não a mim, mas ao meu Avô, apanhou-o e levou-o.

É fácil estarmos no nosso banal dia de teletrabalho obrigatório neste estado das excepções e pensar que isto só acontece aos outros. Chega-se bem perto, passamos por ele sem ver, ataca todos. Mas quando vemos os números, são só números, mas hoje no meio deles está o meu Avô.

Não é só um número, é uma vida, bem vivida, um vida feliz. Aos 92 anos, deixa quatro filhos, onze netos e bisnetos que já nem ele conseguia contar. Foi general, lutou no Ultramar, foi um apaixonado pela vida, um historiador insaciável, um senhor charmoso até ao último segundo, e ensinou muito.

Nestes dias, o WhatsApp familiar, onde outrora se discutia quem levava o quê para a consoada, transformou-se num fórum dedicado à Covid do meu Avô. Eu, que nunca tinha pertencido a este grupo, fui adicionado para ficar a par dos desenvolvimentos. Foi lá que soube que o meu Avô tinha Covid e foi lá que soube que ele tinha morrido.

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Em apenas seis dias, neste grupo de WhatsApp, há um scroll down infindável de emojis e preocupações. Do diagnóstico; dos primeiros dois dias com poucos sintomas para um terceiro dia um pouco pior; quando saiu do seu apartamento no lar para um quarto com supervisão; de uma noite mal dormida e de desconforto para a enfermaria do Hospital Militar, onde em apenas um dia, uma infeção se agravou e ficou a oxigénio de alto fluxo, sedado, para uma inevitável morte, ontem. A notícia chegou e seguiram-se dedicatórias e abraços virtuais para os mais de 20 familiares que aguardavam emojis felizes.

A realidade é duríssima e não nos dá o luxo de fingir que isto é só com os outros.

Os números estão aí, mais altos do que nunca, mais mortes do que nunca, impensável, sem lógica, mas é a realidade. Só nos resta ficar em casa, esperar melhores dias, lembrar aqueles que amamos e seguir em frente.

Adeus Avô, meu querido Avô.