O presidente da ARS mandou para lá os médicos fazerem o que lhes competia, e os gajos, cobardes, não fizeram. Foram estas as palavras, doravante célebres, que António Costa pronunciou off the record, enquanto falava numa entrevista para o Expresso. Como se sabe, os médicos, esses “gajos cobardes”, não gostaram. O Sindicato Independente dos Médicos protestou. A Ordem dos Médicos, pela voz sempre cordata do seu bastonário, Miguel Guimarães, protestou. E uma reunião deste último com Costa, em S. Bento, desencadeou novo protesto, já que, de acordo com a Ordem, as palavras de Costa durante o encontro de três horas que tiveram, não transpareceram na comunicação final (sem direito a perguntas) de Costa aos jornalistas: Costa limitou-se a manifestar o seu “apreço” pela classe médica e o seu desejo que o “mal-entendido” ficasse encerrado, enquanto na conversa a sua atitude teria supostamente sido muito mais auto-crítica.

Pelo lado de Costa, manifestou-se o Expresso e manifestou-se também a deputada socialista Hortense Martins. Em ambos os casos, além de se censurar a difusão de um vídeo que, aparentemente por erro, o Expresso havia enviado para os órgãos de comunicação social, se insistiu em que as palavras haviam sido retiradas do seu contexto. Em relação ao primeiro aspecto, parece-me absurda qualquer tentativa de ocultar a sua existência ou de manter sobre aquelas declarações um muito púdico e engravatado silêncio, como o fizeram alguns jornais, nomeadamente o Público. Mas não quero discutir esta questão agora aqui. Em contrapartida, no que toca à busca do contexto perdido,  confesso que, tendo visto o vídeo, o único contexto salvador, a não ser que se queira entrar no domínio das graçolas, seria o de supor que a declaração teria sido amputada de uma parte inicial e de uma parte final. Algo como: “A última coisa que diria é que o presidente da ARS mandou para lá os médicos fazerem o que lhes competia, e os gajos, cobardes, não fizeram. Não contem comigo para esse género de conversa lamentável”. Acho improvável que o Expresso ou a especialista socialista na análise de “afirmações descontextualizadas”, Hortense Martins, possam produzir estes desejáveis complementos. Mais depressa volta a nossa estridente Cristina à SIC.

A mim, o que me surpreendeu não foram tanto o pensamento em si e as palavras usadas como a cólera – digo bem: a cólera — com que a coisa foi expressa. Uma cólera que, manda a verdade que se diga, já tivemos oportunidade de várias vezes observar em António Costa (não vou fazer o historial: cada um tem a sua memória) e que coabita no seu modo de ser com manifestações de vertiginosa doçura e bondade, como quando dedicou a realização da fase final da Champions em Lisboa (à qual, diga-se de passagem, ninguém ligou nada) aos heroicos profissionais de saúde portugueses, num momento em que a sua intrínseca cobardia ainda lhe passava desapercebida. Mas houve algo que, desta vez, me chamou particularmente a atenção na cólera de Costa. Não sei exactamente que palavras utilizar para definir a natureza desse algo, mas arrisco: a sua artificialidade, o seu lado voluntário e reflectido. Como se ele estivesse conscientemente a querer mostrar o privilégio da superioridade da sua posição. Como se a violência da sua maneira de falar decorresse legitimamente da excepcionalidade do seu estatuto. Havia uma mensagem naquela cólera, e essa mensagem intimidatória era inequivocamente uma mensagem de classe, de poder e mando.

A cólera é uma das paixões mais estudadas pela filosofia e pelas disciplinas que lhe são de algum modo afins. Aristóteles, que sobre o assunto escreveu várias páginas memoráveis, é, como de costume, uma fonte inesgotável. A cólera é “o desejo doloroso de nos vingarmos publicamente de um desprezo manifestado publicamente a nosso respeito ou a respeito dos nossos, sendo esse desprezo injustificado”. Não sendo uma dor, “a cólera é acompanhada de desprazer”, na medida em que temos em nós a representação de uma afronta da qual fomos objecto. Ao mesmo tempo, “é um prazer estar em cólera”, já que infligimos ao outro um sofrimento no mínimo proporcional àquele que nos foi imposto. Vive-se mentalmente a vingança, e a vingança, como coisa distinta do castigo, que é aquilo que a justiça visa, é agradável. Este artigo não é um curso de filosofia e por isso dispenso-me de ir mais longe, mas há ainda algo que Aristóteles escreve, e que, infelizmente, estando de férias, longe de casa e dos livros, não posso citar exactamente. Aristóteles diz que a cólera é quase uma prerrogativa dos cidadãos que, no contexto de uma determinada sociedade, ocupam as posições mais elevadas. Dito de outra maneira: um aristocrata pode exprimir a sua cólera de uma forma que um escravo não pode.

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Isto – que, repito, é um pálido resumo da extensa e filosoficamente muito rica reflexão aristotélica – talvez nos ajude a perceber um pouco melhor a cólera de Costa e a sua invectiva contra os “gajos cobardes”. Obviamente, Costa sentia necessidade de se vingar daquilo que circulou, para falar como João Miguel Tavares, sobre “a teia socialista de Reguengos” e sobre a desgraçada entrevista (também ao Expresso) da sua ministra da Segurança Social, Ana Mendes Godinho, que, entre outras coisas, confessara candidamente que não lera o relatório da Ordem dos Médicos e que não julgava ser esse um seu dever premente. Poderia continuar com a lista de mais alguns objectos de desprezo, para falar como Aristóteles, a começar pela inacreditável Dra. Filomena Araújo, delegada regional de Saúde do Alentejo, que caprichou no elogio do cumprimento de “todos os procedimentos” no lar de Reguengos onde morreram dezoito pessoas (e que também confessou não ter lido o relatório da Ordem dos Médicos), mas não vale a pena. Só isto dá para perceber que estes ataques aos seus – e indirectamente, é claro, a ele mesmo – lhe tenham incutido, apesar do seu novo “estômago alargado” (que raio de imagem!), um forte desejo de vingança, em tempos já teorizado pelo conhecido mestre pensador socialista Jorge Costa.

Dir-se-á que, justamente, a cólera de António Costa, não foi, neste caso, pública, e não pode, portanto, entrar na categoria da vingança. Não foi num discurso na Assembleia da República que ele afirmou que os médicos eram “gajos cobardes”. É a “teoria do desabafo”: estava, em off, a falar com os jornalistas, e lá lhe saiu aquela, como lhe poderia ter saído um comentário sobre uma má contratação do Benfica, o excelente percurso escolar dos filhos ou a deprimente falta de graça de Bruno Nogueira. Acontece que, se o raciocínio parece verosímil à superfície, ele é perfeitamente erróneo se visto de mais de perto. Como foi notado, as conversas em off com os jornalistas não são afáveis devaneios de circunstância: elas visam transmitir informações e influenciar, persuadir. Não pretendo que David Dinis se deixe influenciar facilmente, mas o que interessa aqui é a intenção do outro, que é uma intenção política e, nessa medida, pública. A vingança também passa por aí.

E chegamos ao prazer e, ao mesmo tempo, à artificialidade da cólera de que falei no início. A vingança, que nada tem a ver, repito, com o castigo ou a justiça, é agradável. E a cólera de Costa funciona como uma doce vivência mental da vingança – que se prolongou, de resto, na habilidade das declarações aos jornalistas no final da reunião com o bastonário da Ordem dos Médicos. O prazer da vingança desdobra-se no prazer da manifestação do poder e da excepcionalidade do estatuto, que Costa revela com delícia e claro empenho. Faz isto dele um “gajo cobarde” e abusador do seu estatuto? Não empregaria exactamente essas palavras. Diria apenas que faz dele uma pessoa manipuladora até mais não, com muito limitados escrúpulos e tendencialmente infrequentável. E que não encontra qualquer impedimento às suas palavras e acções por parte de uma oposição que se espreguiça, calada, no mais longo fim-de-semana perdido da história.