O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) é mais uma prova de que para esta gente é necessário ter muita paciência. Mais do que já foi preciso para suportar o vazio do Plano para a Recuperação Económica de Portugal 20-30 (PREP) do Dr. Costa Silva. Em ambos os planos, apesar da situação dramática que a pandemia gerou e de todas as insuficiências do Serviço Nacional de Saúde (SNS) que agora são impossíveis de escamotear, a área da saúde pública é tratada com uma superficialidade e desconsideração que não deixa de me espantar. Sobre o PREP já em tempos me pronunciei. Para a saúde é um mau documento. Quem o escreveu está a milhas do que é valor económico da saúde. Tão longe como os académicos que um dia fizeram uma conferência a que chamaram a Cimeira de Cascais. O tema era valor em saúde. Reuniram-se, presumo que almoçaram, alguns terão ficado para jantar e assinaram um “compromisso”. Foi em 10 de maio de 2019. Pode ler-se, no sítio da conferência, desde os idos de 19, “o Compromisso de Cascais estará online aqui dentro em breve”. Estamos em Portugal. Nada de pânico. Só se passaram 21 meses. Deve ser um documento enorme. Pelos vistos não faz falta.

Neste jornal, antes da pandemia e já alarmado com a falta de visão da intelligentsia política lusa, propus um conjunto modesto de ideias que alguém talvez tenha lido. Nesses textos tentei cobrir matérias de caráter geral,  as estruturas, recursos humanos  e acesso a medicamentos.  Confesso que estava convencido que seriam textos quase finais na participação cívica que decidi manter na esfera da política de saúde pública. Depois veio a pandemia e entendi que deveria continuar a dar opiniões e formular críticas e sugestões para quem as quisesse ler. Lá fui arranjando tempo no meio das minhas principais preocupações que são as que dizem respeito aos doentes com cancros hematológicos. Sem vontade para mais ação política que não sejam estes escritos catárticos, cá tenho estado e assistido de longe, tão longe quanto posso, aos debates, conversas, programas, entrevistas, participações, escriturações, blogs, tweets e várias manifestações de preocupação que outros, bem melhores do que eu, ainda não se cansaram de dar.

Sendo assim, enquanto pessoa interessada na saúde acabei a ler o relatório que agora veio à luz e que pomposamente foi chamado de PRR. E lá tive que escrever mais alguma coisa. Não resisti. Este plano de resiliência é, lamentavelmente, uma oportunidade perdida e, pior do que isso, a confirmação de que, do lado do governo, continua a não haver visão de futuro para as questões sanitárias em Portugal. O novo PRR é só generalidades e nos supostos detalhes não tem nada que o distinga substancialmente, no que à saúde diz respeito, do que tinha sido incluído em sucessivos planos e Orçamentos do Estado. Oscila entre a grandiloquência das grandes causas – “melhorar o acesso, a qualidade e a eficiência dos cuidados prestados, completando a cobertura nacional dos programas de rastreio de base populacional, reforçando a capacidade de diagnóstico precoce assegurando a continuidade dos cuidados ao longo da vida dos cidadãos” – e a intendência menor – dotar todos os ACES com espirómetros. Será que as pessoas têm a noção de que um espirómetro pode ser um aparelho de bolso? Ou que um ACES pode ter a dimensão territorial de cobertura de centenas de quilómetros quadrados? O PRR é um pot-pourri de planos nacionais, “bocas” de circunstância, desejos de peritos avulsos, documentos ciosamente guardados nas gavetas do ministério e alguma boa vontade dos assessores que compilaram as medidas que tinham ficado nos sótãos das memórias de Natais passados. Tudo “igual”, com a agravante de que o mundo mudou. Não é chavão! Mudou mesmo.

É evidente que o PRR toca em alguns dos aspetos mais importantes e revisita temas sempre atuais, ainda por resolver, da excessiva mortalidade precoce e da prevenção da cronicidade, da fragmentação na cadeia de prestação e no excesso de pagamentos diretos, por pessoas singulares, no ponto de contacto com os serviços de prestação de cuidados de saúde. Só que as ditas “reformas” estão escoradas em incertezas, naquilo que concretamente não está elencado, e num modelo de organização da prestação e provedoria de acesso que está esgotado como a pandemia demonstrou.

O PRR, na forma como é apresentado para a saúde, é o atestado de incompetência que faltava a este governo. Passado pelo próprio governo. Está lá tudo o que programaticamente, desde 2016, deveriam ter feito e nunca fizeram. Ainda, como sempre e desde há anos, os hospitais do Seixal, de Sintra e, acreditem, o Oriental de Lisboa, são as estruturas hospitalares a construir. Sobre o novo edifício no IPO de Lisboa, o que também não é novidade, nem uma palavra. Foi preciso o PCP, louvem-se os comunistas, mandar o Governo inscrever uns escassos milhões para estudos e planeamento, a juntar aos rios de dinheiro que já se gastaram em plantas e avaliações, para que o assunto viesse elencado nos mapas do OE para 2021. Mais nada. Sobre oncologia, o PRR manda fazer rastreios. Mais nada. Muita conversa sobre saúde mental, mas nem uma palavra que descreva uma ação concreta. Mais nada. Não há uma justificação, uma que seja, para os investimentos propostos. O Plano não tem uma meta, uma que seja, em termos de resultados em saúde. O PRR é uma miséria. Tão grande como o estado das finanças públicas depois destes anos de governação do PS. O plano tem o tipo mais temível de miséria. É uma miséria de ideias. Um desconchavo intelectual.

Nada diz, no concreto, sobre as inevitáveis mudanças no financiamento do SNS, sobre a urgência de rever a forma como os profissionais são pagos, sobre a requalificação urgente de todo o parque sanitário público, sobre o acesso de todos a todo o sistema de prestação, sobre um sistema nacional de informação sanitária, sobre qualidade em saúde, sobre resultados em saúde, sobre os que morrem enquanto esperam por diagnóstico e, consequentemente, tratamento, sobre a efetivação da recuperação dos atrasos no SNS, sobre o modelo de assistência domiciliária,  sobre a avaliação, aprovação e disseminação das inovações tecnológicas, sobre a interoperabilidade total da rede eletrónica de comunicação de dados clínicos em todo o sistema português de saúde, sobre as dotações de pessoal, sobre as revisões de carreiras técnicas, sobre a reconstrução da rede de saúde pública, sobre a revisão do modelo de cuidados a longo prazo, erradamente chamados de cuidados continuados, sobre a prevenção estruturada num modelo de saúde em todas as políticas, sobre a avaliação obrigatória de impactos na saúde dos investimentos e obras públicas, sobre a descentralização das intervenções promotoras da saúde e preventivas das doenças, sobre legislação protetora da saúde, sobre educação para a saúde, no fundo, sobre o que verdadeiramente interessa e se insiste em adiar. O que fazer, como fazer, quando fazer, com que fazer, onde fazer? Para quê, porquê? Não, nada disso, enganam-nos com um PRR que é uma edição resumida do Plano Nacional de Saúde que insistem em não rever.  Estamos fartos. Já não há resiliência. Não há paciência.

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