Nem só de impostos altos e licenciamentos labirínticos vive o mal-estar da habitação em Lisboa. Há razões mais profundas, mais longas de contrariar, mas conhecidas e enfrentáveis. Se as queremos compreender, é preciso olhar para os aspectos dinâmicos e os aspectos administrativos da cidade, encontrar os ajustes e desajustes dessa relação, e tentar ver de que maneira eles podem afectar, ajudando ou prejudicando, o acesso à habitação. Os aspectos dinâmicos são determinados pelas duas principais funções de uma cidade, viver e trabalhar, e pelos movimentos diários que as pessoas são obrigadas a fazer para se deslocarem entre um lugar e o outro. Os aspectos administrativos estão no governo destes territórios, no concelho de Lisboa e na respectiva Área Metropolitana, composta pelos seus 18 concelhos de ambos os lados do Tejo.

Quem vive em Lisboa sabe que durante a semana é um inferno circular de carro. A qualquer hora. E aos fins-de-semana anda-se descontraidamente, parece que os carros desapareceram. Ao contrário do que pensam as crianças e alguns candidatos a estadista do ano, isto não acontece porque as pessoas decidiram fechar-se em casa. Acontece porque efectivamente há muito menos pessoas, e os carros ainda não se acostumaram a passear sozinhos. Dois terços dos empregos dentro da cidade são ocupados por pessoas que vivem fora de Lisboa, nos outros concelhos da Área Metropolitana. Estas pessoas não conseguem encontrar uma casa para viver dentro de Lisboa; e também não conseguem encontrar emprego para trabalhar nos concelhos onde vivem. Uma estupidez que a história recente ajuda a explicar mas que quase cinco décadas de Portugal democrático e “poder local” não conseguiram ou não se interessaram por consertar.

Mais alguns números, para dar uma ideia da natureza e dimensão do problema. A população de Lisboa não chega a 550 mil habitantes; na Área Metropolitana vivem quase três milhões. Por outro lado, pertencentes a pessoas que vivem dentro da cidade, existem perto de 200 mil carros; todos os dias, de segunda a sexta-feira, entram mais 370 mil carros das tais pessoas que vêm trabalhar de manhã e regressam a casa ao final do dia. Visivelmente, há um desequilíbrio, uma excessiva centralidade de Lisboa que provoca este movimento pendular absurdo. Prejudica quem vive fora mas também prejudica a própria cidade.

De resto, convém corrigir a retórica falsa de que existe um “excesso de automóveis” em Lisboa; cada automóvel tem dentro pelo menos uma pessoa que precisa de ali estar, àquela hora, desesperada naquele engarrafamento, porque a vida dela assim o determina. O que existe é excesso de pessoas com uma vida infernal, a merecer que o poder político enfrente o problema com outra coragem e sabedoria. Porque não tinha de ser assim. Boa parte do desequilíbrio na habitação nasce da teimosia com que Lisboa vive ensimesmada nos limites literais do seu território, e de costas voltadas para os outros municípios da Área Metropolitana. Seria possível e desejável uma pessoa viver no Seixal, em Loures, ou em Vila Franca de Xira, e sentir que vive em Lisboa.

Como se faz isso? Concentrando políticas, do governo da República e dos vários governos municipais, em três pontos. Primeiro, excelentes infra-estruturas de comunicações entre os municípios. Segundo, excelentes transportes. Implicava, a pouco e pouco, mas com determinação, alongar o Metro a uma rede muito mais vasta e apertada. Terceiro, distribuição equilibrada entre habitação e emprego. Isto implicava aumentar brutalmente a oferta de habitação dentro de Lisboa, sobretudo reabilitando e deixando reabilitar; e transferir empresas e escritórios para os outros municípios da Área Metropolitana, a começar pelos ministérios e organismos do Estado.

É um assunto que interessa a Lisboa mas também interessa ao país: neste momento, 45% da população portuguesa vive nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto – Portugal não tem economia nem população para mais do que estas duas cidades. E uma coisa é dizer aos investidores para porem o dinheiro deles num mercado com 550 mil pessoas; outra coisa é dar-lhes uma cidade com três milhões. Mas para isso, viver no Seixal ou em Vila Franca de Xira tem de ser viver em Lisboa.

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