Em tempos de emergência, o sentimento de comunidade e a generosidade brotam por toda a sociedade. Voluntários e vizinhos levam bens e oferecem o seu apoio a quem mais precisa, ajudando idosos e os mais carenciados. Mas, de facto, não conseguimos ter a real noção de todos aqueles que precisam de ajuda e nem todos estão disponíveis para serem voluntários. Este é o momento para novas abordagens.

O café está vazio

O café que frequentamos junta à nossa casa na Mouraria é gerido por dois irmãos. Ali, todas as pessoas são bem-vindas. Trabalhadores dos escritórios próximos, turistas que fazem uma paragem na íngreme subida para o Castelo. Os principais clientes são os idosos do bairro. A senhora que caminha com muitas dificuldades, é ali que toma todas as manhãs o seu copo de leite e uma torrada com manteiga. Todos os dias dois colegas discutem futebol e política à hora de almoço. E três amigas, encontram-se todas as tardes, para falar dos temas do momento.

O café está fechado por causa da pandemia provocada pelo Covid-19. Os idosos não podem mais sair. Quando o Covid-19 começou a fazer parte das conversas diárias no café, foram colocadas diversas notas na entrada. “Posso ajudar no que for preciso, basta ligar”. “Liguem-me se precisarem de conversar”. “Juntem-se a este grupo de WhatsApp se precisarem de ajuda para as compras”. Eu diria que é este o espírito que precisamos sempre, mas hoje mais do que nunca. Mas não seria ainda melhor se nos pudéssemos organizar de forma estrutural, utilizando a poderosa tecnologia que temos disponível nos nossos bolsos?

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Será que não podemos fazer algo mais?

Os negócios estão a perder dinheiro porque os mercados estão parados, à espera. Os salários não podem ser pagos, os turistas ficam em casa. Vamos entrar numa recessão mundial sem precedentes; as primeiras previsões apontam uma contração do PIB entre 2 a 10%.

Muitos apelam a soluções externas. O governo de António Costa pode apoiar os trabalhadores e as empresas. Podemos adotar medidas de outros países, tais como pagar salários para que as empresas sobrevivam à crise ou descer o IVA. Ou esperar a intervenção da UE que pode decidir direcionar fundos específicos para as zonas mais afetadas, como o Norte de Itália e Espanha. Há muitos mecanismos à disposição.

Contudo, estas medidas, sendo, sem dúvida fundamentais e necessárias, dependem sempre do exterior. Temos um enorme valor nas nossas comunidades e muitas das soluções podem passar, também, por nós. Temos muitos recursos que não estão a ser devidamente utilizados para suprir necessidades prementes. Existem muitos edifícios vazios que podem ser convertidos em habitação ou em espaços de trabalho. Há muitas pessoas em casa que poderiam apoiar ativamente os idosos e os mais carenciados. Existem muitas organizações locais que poderiam providenciar um maior suporte de proximidade. Face a tudo isto, o que nos está a limitar?

O poder deve estar também nas comunidades

Acredito ser consensual que as soluções existentes de apoio comunitário necessitam de ser reinventadas. As fortes ligações sociais em comunidades são de certa forma relíquias do passado. A solidariedade moderna, está quase limitada à redistribuição de riqueza por via do sistema fiscal a favor dos mais carenciados, e as cadeias de suporte estão muito institucionalizadas. Qualquer tentativa de alterar este processo enfrenta inúmeros obstáculos.

Muitas pessoas não estão naturalmente motivadas a prestar apoio de forma altruísta. Contudo, existem mecanismos de recompensa que, bem implementados, podem reverter esta situação e fomentar uma cada vez maior participação.

Um sistema de incentivos, baseado numa moeda local, permite criar um ecossistema que favorece uma maior inclusão, a criação de um sentimento de pertença, reforço comunitário e um fluxo virtuoso de transações que recompensa as trocas nessa comunidade, baseadas num espírito de colaboração e contribuição para o bem-estar de todos. Desta forma, o significado de reciprocidade ganha uma dimensão mais efetiva.

A ideia base que todos temos talentos e capacidades e que, ativando os cidadãos, a sociedade passa a ter à sua disposição um enorme potencial o qual, de outra forma, não seria aproveitado. Pessoas que, por qualquer motivo, se encontrem fora do mercado de trabalho, têm a possibilidade de reinventar as suas capacidades, não estão mais isoladas e podem beneficiar de um conjunto de novas iniciativas. Podem reconstruir a sua dignidade, autoestima e independência voltando a ser cidadãos ativos e integrados.

Para os mais necessitados, a vantagem óbvia é poderem aceder a uma rede de suporte à qual dificilmente teriam a possibilidade e capacidade de acesso.

A galinha dos ovos de ouro é conseguir tirar proveito da imensidão de pessoas e profissionais que estão disponíveis na nossa rua, no nosso bairro, na nossa cidade ou até na nossa região. Propomos um sistema complementar aos serviços profissionais proporcionados pelo Estado e Instituições, recorrendo a novas tecnologias que motivem os cidadãos a serem mais ativos e participativos na sua comunidade.

Através de uma simples app disponível a todos e de uma linha de apoio para quem não tenha acesso à internet, os cidadãos passam a integrar um ecossistema baseado num sistema de recompensas que aproveita recursos não utilizados e oferece um rendimento adicional para aqueles que estão fora do mercado de trabalho, ao mesmo tempo que reforça o sentimento de pertença comunitária e cria fortes laços emocionais entre os seus membros.

Ao mesmo tempo, é criada uma rede de suporte para idosos, carenciados e todos aqueles que precisando de ajuda são identificados e “trazidos” para este sistema de apoio.

De mãos dadas para criar um futuro melhor

Os sistemas colaborativos de recompensas, que têm diferentes arquiteturas, como por exemplo a implementação de moeda local, são mecanismos inovadores que têm o objetivo de concretizar, efetivamente, políticas sociais, de sustentabilidade, inclusão social e qualidade de vida. Os cidadãos trocam serviços na comunidade por recompensas e desta forma conseguimos atrair mais cidadãos – os que não se sentiam suficientemente atraídos pelo voluntariado ou os que não estavam a participar ativamente na sociedade (por exemplo, sentem que têm pouco tempo depois do trabalho).

Estas recompensas serão utilizadas na rede de comércio local, que utiliza esta ferramenta como um sistema de angariação e fidelização de novos Clientes, e melhoria da sua imagem pública e comunitária.

Para iniciar uma Moeda Local, não precisamos de começar do zero! Muitos países e uma diversidade imensa de modelos já foram testados, e alguns, lançados no pós II Guerra Mundial, ainda hoje são usados activamente em comunidades que criaram os seus mecanismos de resiliência. A experiência é geralmente positiva e demonstra que os membros das comunidades necessitam a prazo de menos apoio de serviços profissionais, uma vez que conseguem grande parte do suporte necessário na sua comunidade. Além das vantagens que estes modelos apresentam, existem, ainda, poupanças significativas para o Estado e demais Entidades Públicas.

Esta é uma das possíveis soluções que podem emergir desta crise e acreditamos que pode servir para criar uma sociedade mais resiliente, mais inclusiva e aumentar a qualidade de vida dos seus cidadãos. Nós, cidadãos, podemos fazer mais, temos o poder nas nossas mãos e devemos utilizar esse poder para, de mãos dadas, criarmos um futuro melhor.