É, eu sei, de uma trivialidade absoluta, mas as pessoas têm uma notória propensão para se intressarem apaixonadamente por várias coisas que em nada dependem delas, isto é, que não têm possibilidade alguma de modificarem num sentido ou noutro. E isso não por curiosidade intelectual, para perceberem melhor o mundo físico ou humano em seu torno, mas como se pudessem agir sobre tais realidades. Isto não é exactamente uma crítica. Quem não tiver nunca pecado no capítulo que atire a primeira pedra. Mesmo nos indivíduos mais normais, a fronteira entre o que depende de nós e aquilo que de nós não depende não é nunca perfeitamente nítida. Gostamos sempre de nos pensar mais um bocadinho do que somos.

A lista destas transgressões, chamemos-lhes assim, é, é claro, infinita. O exemplo do futebol é um bom exemplo. A pulsão para intervir nos resultados dos jogos é imensa. Não estou a falar de batotice, corrupção, ou algo assim, situações que colocam obviamente outras questões. Estou a falar do tipo que grita, do sofá em frente à televisão, para o jogador: “Vai! Vai! Chuta! Chuta!”. Claro que ele bem pode gritar à vontade, que o outro não ouve a acaba por driblar, fatidicamente perdendo a bola. Mas o futebol não se presta muito a uma afeição puramente contemplativa e a atitude activa, prática, é uma atitude natural. Se não fosse assim, de resto, tinha muito menos graça.

O mesmo talvez não se possa dizer doutros exemplos da vocação a transgredir imaginariamente os limites daquilo que depende de nós e, portanto, daquilo que está ao nosso alcance. Tomemos o exemplo do que se diz, e escreve, nas mais insignificantes zonas da Europa, sobre a União Europeia. Permito-me repetir: não me refiro ao que é escrito e dito ao modo analítico, tentativamente prevendo tendências futuras ou consequências desejadas ou indesejadas de certos actos. Refiro-me a comentários que poderíamos chamar participativos, isto é, não ocultando nunca uma vontade que ambiciona ser satisfeita e que, além disso, se sente no direito e na necessidade de o ser. O problema aqui é claramente o da desproporção. Por muito lindas que possam ser as fantasias, quem manda são, como em todo o lado, os poderosos, mesmo trajados, às vezes, de prodígios de benevolência. Face aos protestos em contrário, não se vê, francamente, diferença alguma para com o tipo que, de cerveja na mão, febril grita “Vai! Vai! Chuta! Chuta!” para a televisão. Mas também aqui não convém ser excessivamente crítico. A União Europeia, para o bem e para o mal (neste caso mais para o mal do que para o bem, na minha opinião), também foi feita para criar essa ilusão, que, como todas as ilusões, nos fazem trocar a realidade pelas aparências e pelo logro mais ou menos catastrófico.

O problema com isto (mais com o segundo caso do que com o primeiro, como é bom de ver) é que nos cria a falsa ideia de estarmos a deliberar, ou de participarmos numa deliberação, quando isso, nos melhores dos casos, só residualmente acontece. A verdadeira deliberação obedece a regras muito particulares que Aristóteles descreveu, como de costume, na perfeição. (Já o devo ter citado a este respeito, mas não faz mal.) A deliberação dá-se entre o desejo (um desejo realizável) e a vontade, como ponto de partida, e conclui-se com a escolha, a decisão e, finalmente, a acção. Tudo o que Aristóteles escreve sobre a deliberação é fascinante, mas vale a pena sublinhar um ponto que, por ser evidente, não merece menos ser repetido.

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Não deliberamos sobre tudo. Deliberamos apenas sobre o futuro, e sobre aquilo que, no futuro, nos aparece indeterminado e dependente de nós. Assim, podemos sem dúvida desejar que um determinado atleta ganhe a corrida; mas isso não constitui matéria para deliberação, pois que não depende de nós. Não deliberamos, igualmente, sobre aquilo que, pura e simplesmente, nos acontece, sem intervenção da nossa vontade. Não deliberamos sobre os seres imutáveis e eternos, ou sobre os seres cujo próprio movimento é eterno, nem sobre aquilo que se encontra sob a alçada de um acaso originário. Deliberamos, repitamo-lo, sobre o que depende de nós, seres autárquicos.

Dito de outra maneira, voltando à questão inicial e aos exemplos dados, referentes à transgressão do que de nós depende. Cair nesse logro pode bem ser definido como uma patologia da deliberação. Assume-se como dependendo de nós algo que se encontra na totalidade em mãos alheias. Os discursos sobre a economia nacional que falam grosso contra os chamados “mercados” e que alucinam as pernas tremelicantes dos banqueiros alemães são um exemplo perfeito dessa patologia. Mas há várias outras patologias da deliberação: fingir como deliberação algo que não é mais do que um trânsito ininterrupto do desejo à acção, sem mediação de nenhuma espécie. E por aí adiante.

Porque é que chamei para aqui a teoria aristotélica da deliberação? Por uma razão simples. Porque ela é um modelo exemplar de um comportamento teórico racional que não esquece a dimensão do tempo (a deliberação dá-se no tempo e leva tempo – um tópico sobre o qual Aristóteles diz coisas importantíssimas). A deliberação é o nosso modo mais eficaz (quando para ela temos tempo) de lidar com as coisas humanas. E, no sentido inverso, a corrupção do processo deliberativo, nas suas várias formas (apontei duas: poderia ter apontado igualmente várias outras), possui as mais nefastas consequências sobre a vida política. Dos desejos irrealizáveis colocados no início da deliberação até à suposição que aquilo que não depende de nós de facto de nós depende, passando pela atribuição de uma intenção deliberada ao que pura e simplesmentenos acontece (as maneiras de falar que herdámos, por exemplo),  há uma panóplia de patologias deliberativas com efeitos catastróficos para a vida pública. Não dei abertamente exemplo português algum – enfim, dei um -, mas poderia, é claro, ter dado vários. Portugal é sem dúvida, hoje em dia, um terreno fácil de ilustração para estes males sortidos do raciocínio. Analisá-los é um bom instrumento de educação política.