Recusaram-se a negociar com a Catalunha e remeteram o assunto para o foro judicial, impondo a lei e a constituição contra o processo autonómico. Parecia inteligente: despartidarizavam a questão e chutavam a bola da repressão para os tribunais. Esqueceram que, numa democracia, o fundamento de todo o sistema legal é a vontade popular expressa num parlamento que faz as leis. Ou seja, que a dimensão politica também está presente em todo o sistema jurídico. E que iriam necessariamente acrescentar à equação do processo autonomista o julgamento dos responsáveis pelo referendo de novembro de 2104, introduzindo um novo imponderável político. Artur Más, que chegava às sessões do Tribunal rodeado literalmente de várias centenas de “alcaldes” catalães, aproveitou bem esse palco mediático. E ninguém esperava que o Tribunal o condenasse apenas a 2 anos de interdição de direitos políticos. Não o condenou a pena de prisão evidentemente para não o converter em mártir pela independência. Mas revelou uma fraqueza que é quase um incentivo à secessão.

Descuidaram os argumentos políticos a empregar contra o fortíssimo princípio da autodeterminação brandido por Barcelona. Continuaram a insistir que, para se decidir sobre a independência da Catalunha, era preciso fazer um referendo em toda a Espanha. Ridículo: para se obter um divórcio não é preciso o consentimento de ambos os cônjuges, basta um decidir que se quer ir embora. Politicamente equivale a dizer que, numa votação para se aceitar a independência das colónias, a metrópole também teria de votar favoravelmente.

Pior, não desmentiram as declarações do ministro da economia espanhol, segundo as quais o governo espanhol “nunca vai deixar que ocorra” a independência catalã porque isso significaria um “empobrecimento brutal” na ordem dos “25 a 30% do PIB”. Como se não tivesse ficado absolutamente claro, De Guindos acrescentou “Não é só uma questão de legalidade … é também uma questão de racionalidade económica”. Desastroso. É chocante nem sequer se terem apercebido como na Catalunha são interpretadas essas palavras – que Madrid se quer simplesmente continuar a aproveitar das riquezas catalãs. E ao reconhecer que a riqueza produzida naquela região é um terço da riqueza de toda Espanha, apenas se reforça a ideia da viabilidade económica da independência.

Em seguida surgiu a questão de Gibraltar. Decidiram reavivar a oferta de dupla soberania sobre o rochedo que tinha sido rejeitada por 98% dos gibraltinos em 2002, procurando simultaneamente garantir em Bruxelas que as negociações do Brexit em relação ao rochedo teriam de ter o aval de Madrid. Parecia inteligente: demonstrava determinação em prol da união nacional, útil para dissuadir os catalães, e aproveitava um erro ou debilidade britânicas, para além de brandir o novo ranking espanhol de quarto lugar entre as potencias europeias… Mais um tiro que saiu pela culatra: em 16 abril, dia da pátria basca, o presidente do PNV, o maior partido da região, veio reivindicar para a Comunidade Autónoma Vasca “uma co-soberania como a de Gibraltar”. Pior ainda, ao hostilizar a Grã-Bretanha, criaram as condições para os catalães romperem o isolamento internacional e obterem finalmente uma componente fundamental que ainda lhes falta no processo independentista: o apoio de uma grande potência.

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Pouco tempo antes tinham decidido construir um armazém nuclear em Almaraz sem consultar Portugal sobre as implicações ambientais transfronteiriças, desencadeando uma rara queixa de Estado contra Estado junto do Tribunal Europeu. Portugal desistiu da queixa, sem que a Espanha tivesse desistido da construção do armazém, ou confirmado que encerraria da estação nuclear no prazo previsto.

Por último, veio a difamação pública de Cristiano Ronaldo e de José Mourinho, com a publicitação da alegada fuga ao fisco espanhol. Um assunto que poderia ter sido resolvido discretamente e em segredo de justiça, mas ao qual decidiram dar a máxima publicidade. Assim deram um golpe, que poderá ser mortal, a uma rara experiência de sucesso mundial de aliança peninsular dos nossos dias, que permitiu às cores espanhola e portuguesa alcançarem os píncaros do reconhecimento e fama internacionais.

Antigamente davam-se alcunhas aos reis, procurando resumir numa única palavra a essência de um reinado. Hoje em dia, o máximo responsável governamental espanhol merecia a alcunha de “el fragmentador peninsular”.

Madrid não percebeu que a união faz a força, mas não pode manter-se pela força. Não percebeu que o seu papel não é servir-se das autonomias, mas antes servi-las. Não percebeu a profundidade do problema da autonomia catalã, que radica, não na legalidade, não na economia, mas na afetividade. No cerne do mistério, da razão pela qual as pessoas se identificam e se sacrificam, por vezes até à morte, por determinado país, estão razões sentimentais, do foro do coração. A Catalunha tinha de ser cortejada por Madrid. Tal como aconteceu no Canadá com o Quebec, os espanhóis deviam enviar cartões postais a todos os seus amigos catalães, dizendo quão gostariam que ficassem juntos. Falta uma operação de charme, não de policia, para convencer os catalães.

Com um referendo marcado para o próximo dia 1 de outubro, e um verão que se avizinha quente e acelerado — a campanha eleitoral incidirá sobretudo em setembro — resta saber se não será já demasiado tarde para evitar uma confrontação com consequências imprevisíveis para toda a península.