Texto lido na cerimónia de inauguração do monumento a Maria José Nogueira Pinto:

 

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Começo por agradecer, em meu nome, dos meus filhos, das minhas cunhadas e de toda a nossa família, a iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa de erguer este monumento, da autoria do Arquitecto Rui Sanches, à memória de Maria José Nogueira Pinto, a quem daqui para diante, chamarei Zezinha, como todos nós sempre, na Família e entre os Amigos, a tratamos.

Estamos por isso gratos à Câmara de Lisboa – uma instituição que a Zezinha integrou e serviu como vereadora eleita, com a dedicação, a competência e o entusiasmo que punha em tudo o que fazia. E onde deixou projectos como o da Baixa-Chiado, cuja importância e significado o Sr. Presidente da Câmara já sublinhou nas palavras aqui ditas e que também agradeço.

Sempre acreditei que os bons exemplos, sobretudo em tempo e lugar em que não são frequentes, devem ser referidos e explicados, na esperança de que tenham seguidores. E no caso da Zezinha estamos perante um exemplo de amor à comunidade e de paixão pelo bem público.

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Por isso, e só por isso, venci a natural reserva e pudor de falar, em público, de uma pessoa com quem partilhei, durante quarenta anos, a intimidade e o melhor e o mais difícil da vida.

Quero, desde já, agradecer o lugar escolhido para este memorial: este canto de Jardim, entre duas praças emblemáticas da cidade, com esta janela voltada ao Tejo, na Ribeira das Naus, em frente ao Arsenal da Marinha, uma espécie de casa aberta ao rio, aos céu e aos outros, uma casa que convida quem chega a sentar-se, uma casa sempre incompleta onde parte da obra é feita e o resto é com Deus e com os que vêm depois.

O Tejo é rio de muitas aldeias: o rio da Aventura portuguesa, da partida e do regresso das caravelas e das naus, o rio do Império, símbolo e sinal da independência e da grandeza de Portugal; é o rio de Lisboa.

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E Lisboa é uma cidade muito ligada à Zezinha: a cidade onde nasceu, a cidade onde estudou, a cidade onde nos conhecemos, onde casámos, onde nasceram os nossos filhos. A cidade para onde voltou e onde trabalhou e viveu quase toda a sua vida – salvo os tempos de África, do exílio e uma breve comissão de serviço em Madrid –; cidade onde soube do mal que tinha e onde vivemos essa última e dolorosa peregrinação; a cidade onde morreu.

Tinha aqui as suas raízes mas – como muitos portugueses – estava bem em qualquer lado do mundo porque estava bem com ela mesma.

A Zezinha foi uma mulher de valores constantes, de paixões lúcidas, de causas consequentes, numa vida atravessada vicissitudes mas guiada por linhas de rumo bem definidas.

Tinha uma concepção do mundo enraizada na crença e na vivência de um cristianismo de convicção e de prática. Uma fé vivida de uma forma generosa, aberta, livre, mais do Sermão da Montanha que dos Devocionários piedosos. Uma fé ortodoxa mas fresca e generosa, aberta e lúcida perante o mundo real. O que é “amar o próximo como a nós mesmos” senão pôr-nos na pele dos outros, percebê-los, senti-los, procurar saber por que são assim, sobretudo quando são diferentes, estranhos, inimigos, até? Não será essa a verdadeira lógica evangélica? Ela assim o pensava.

Mas com este cristianismo profundamente enraizado na prática e generosidade universal da sua mensagem, a Zezinha tinha também nas coisas do mundo uma profunda e permanente racionalidade. Por isso falei há bocado em paixão lúcida.

Foi essa mesma paixão lúcida que pôs no serviço público – em funções de direcção na Maternidade Alfredo da Costa ou na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Estudava as questões, procurava os recursos e as equipas e só depois avançava para a execução da obra. Todos o que trabalharam com ela – e estão aqui alguns – sabem que era assim.

Para ela a vivência cristã enquadrava o serviço da comunidade, ou das comunidades: primeiro do país, da pátria, de Portugal. Contavam para ela os valores políticos, da polis, da independência, da liberdade e da identidade nacional, porque sabia que todos os outros valores políticos – as liberdades, a justiça, os direitos das pessoas e das instituições, o primado das constituições e das leis –, só valiam, na sua existência, se a nação e a comunidade fossem livres. Por isso, para ela, o interesse nacional sempre passava à frente dos interesses das corporações, das empresas, dos grupos, dos partidos. Esses, todos estes, eram instrumentos, eram meios, para atingir fins, fins que eram determinados pelos princípios primeiros e os serviam.

Para além de um cristianismo aplicado ao próximo anónimo de todos os dias, para além de um patriotismo activo e consciente da Nação real, a Zezinha cultivou e viveu a paixão da Família: da família de onde vinha, da casa onde aprendeu os valores da cidade, e da família que criou comigo e com os nossos filhos. A família alicerçada em valores religiosos e políticos, e que, talvez por a saber e querer sólida, encarava com verdade, com autenticidade e com a liberdade dos filhos de Deus, não cedendo a convenções quando o exílio foi a alternativa à submissão. Então deixou para trás a casa para ir comigo.

A Zezinha esteve na linha da frente das batalhas que os católicos portugueses tiveram que travar nos nossos dias. Sempre com coerência, sempre com inteligência, sempre afirmando as suas convicções contra as dos seus adversários, mas no respeito pela humanidade e pela coerência deles. Por isso estão aqui tantos que também se tornaram e são nossos amigos.

Também esteve assim na política: desde o dia em que, aos 17 anos, furou sozinha uma greve académica, ao da partilha consciente e consequente da sorte dos vencidos no final do Império. E depois teve, a noção da mudança dos tempos, da urgência e importância do regresso, da volta à normalidade, da necessidade de participar na luta política também na forma canónica, normal, partidária, para servir os seus valores e ideais.

Devo dizê-lo, na condição de quem não entrou nessas batalhas, ou nessa forma alinhada de lutar por valores e causas, que ela foi para mim e para muitos o exemplo vivo de que se pode estar na acção político-partidária sem, necessariamente, se perder a alma, a coerência, ou o respeito próprio e dos outros.

Quer nos cargos políticos – governamentais e partidários – por nomeação ou eleição, quer nas funções administrativas e burocráticas, executivas ou de aconselhamento; quer nas colaborações jornalísticas ou nas tribunas de opinião, sempre lhe vi um extremo escrúpulo no estudo dos problemas ou dos dossiers, uma atenção de menina aplicada e respeitadora da necessidade de saber para tentar compreender e decifrar o contraditório das matérias – para depois, com os que tinham a experiência ou o saber especializado, se aconselhar e debater e, finalmente, decidir.

E decidir com decisão, com escolha, sabendo que a escolha tinha também um peso e um custo – do que era rejeitado e do que podia gerar inimizades nessa hora.

Tudo isso implicou um modo e uma forma de estar e de viver. E também não é novidade para nenhum dos presentes que foi um modo generoso, livre e alegre, um modo que não tinha nada a ver com a solenidade conselheiral dos salvadores do povo, mas ainda menos com a banalidade desenvolta dos malabaristas que fazem da política uma sucessão de números, um espectáculo mirabolante e surpreendente, sempre a pensarem no próximo coelho a tirar da cartola, no próximo lenço a desfraldar na expectativa da apoteose ou consagração mediáticas.

Não. Também nisso ela foi diferente e nós, os que tivemos o privilégio de estar com ela, sabemos isso.

Finalmente e ainda sobre o seu modo de viver e estar nas coisas, o que mais me impressionou na Zezinha foi nunca a ter visto com medo – a não ser naquelas poucas vezes em que tivemos medo por alguém que nos era próximo e nos era querido. Ela, por ela, nunca a vi ter medo de coisa nenhuma: nem de passar fronteiras a salto, nem de chegar a lugares de exílio, nem da falta de dinheiro, nem de combates políticos desiguais. Nem sequer de humilhações ou derrotas.

E não lhe vi medo nenhum perante a morte. Pena sim, pena de deixar a vida, a família, os netos pequeninos, esta cidade, este rio, esta luz. Uma pena de uma pessoa viva e que gostava das coisas da vida.

Mas medo, não: nem da doença, nem dos tratamentos, nem da morte que espreitava mais ou menos garantida ao virar da esquina. Acreditava e confiava noutro Senhor e noutro Reino e isso via-se bem como o testemunhou o Senhor Presidente da Câmara. Mas não era só isso.

Que este memorial sirva para a lembrar e a esse seu caminho como exemplo para nós e para os outros. É o que podemos hoje, pensando na perda, aqui desejar.

Lisboa, 27 de Maio 2014