Vivemos um tempo em que, por todo o lado, se elegem a promoção da transparência, bem como a prevenção e o combate à corrupção no exercício de funções públicas como objetivos essenciais da regulamentação dos negócios públicos. Assim é também em Portugal, mesmo que o legislador nos brinde, por vezes, com detalhes obscuros e até bizarros numa matéria que reclama clareza e sensatez.

Mas agora o que está em pauta não é a referência a uma peça legislativa obscura e complexa, com omissões intencionais ou outras subtilezas; pelo contrário, a legislação de que vamos falar pretende ser muito clara, cristalina, nas suas opções.

Com efeito, representando um desvio e mesmo uma inversão grosseira do caminho que tem sido trilhado desde 2008, com o Código dos Contratos Públicos, está em discussão na Assembleia da República uma proposta do Governo que visa a alteração do Código dos Contratos Públicos e a aprovação de medidas especiais de contratação pública.

Justificadas pelos bondosos propósitos da flexibilização, simplificação e aceleração dos processos de contratação pública, as medidas especiais consistem, fundamentalmente, em soltar a rédea aos decisores públicos e autorizá-los a adotarem, em vários domínios, processos de ajuste direto e de consulta prévia e, portanto, a escolherem livremente as empresas que vão fazer as muitas obras públicas que os fundos europeus financiarão, ou que vão prestar serviços e vender produtos ao Estado e às autarquias – entre outros, são abrangidos os contratos financiados por fundos europeus, contratos de construção de habitação pública, e todos os que, por despacho de membro do Governo, forem tidos como integrados no âmbito da execução do Programa de Estabilização Económica e Social.

As medidas não afastam apenas os processos de concurso, ousam ir além e derrogam também as regras que impõem limites à adjudicação sucessiva de contratos às mesmas empresas. O que se quer promover é, portanto, a substituição da regra do concurso, em que todas as empresas interessadas podem concorrer, pela regra do convite, que reserva o acesso a sucessivos processos de contratação pública a empresas livremente escolhidas pelos decisores.

Para além das muitas dúvidas de natureza jurídica, a impensável generalização da regra de convite responde a um propósito que aparenta ser generoso – acobertado sob as ideias de flexibilização de processos –, mas que, na verdade, tem tudo para produzir maus resultados, desde logo para todas as empresas que estejam fora dos radares dos convites. O fenómeno produz ainda um resultado surpreendente: elimina a corrupção. É isto mesmo: a entrega de rendosos contratos públicos a empresas escolhidas dispensa toda a sorte de “contactos secretos”, de “concursos feitos à medida” ou de diligências análogas com relevância criminal. No âmbito alargado de aplicação das novas medidas especiais de contratação tudo isso é dispensável: sem risco, basta o envio de um convite a uma empresa situada dentro do radar, que responderá com uma “boa proposta” e o negócio está fechado. Tudo limpo e às claras, com publicidade do feito no portal dos contratos públicos. No dia seguinte, a mesma empresa pode receber novo convite para mais um contrato. De novo responderá e de novo o negócio ficará fechado. Tudo limpo e às claras, com transparência. E assim se engendrou uma solução de eficácia máxima para acabar com a corrupção nos negócios públicos. É tudo lícito e estará tudo bem. Ou talvez não.

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