Augusto Santos Silva, o ministro dos Negócios Estrangeiros, causou esta semana bastante excitação por ter sido apanhado por uma câmara indiscreta da TVI a comparar a concertação social a uma “feira de gado”. Não sendo porventura a linguagem mais apropriada – como o próprio Augusto Santos Silva admitiu no pedido de desculpas – a verdade é que o clamor gerado pareceu excessivo face à substância e ao contexto das declarações.

Seria aliás um sinal preocupante indicativo de um estado geral de bovinidade do país se um dos mais competentes ministros do Governo fosse forçado a sair pelo uso da referida expressão numa conversa privada com um amigo de longa data. O policiamento da linguagem é uma das características mais irritantes (e preocupantes) dos tempos politicamente correctos em que vivemos. Augusto Santos Silva pode ter sido infeliz na expressão escolhida (e o facto de ser ministro pode justificar a relevância de dar a notícia), mas investir frontalmente tentando fazer disso um caso de extrema gravidade política foi injustificado e descabido.

Augusto Santos Silva não ameaçou ninguém nem foi apanhado a cometer qualquer ilegalidade ou conduta menos própria. Limitou-se a tentar fazer humor empregando uma comparação que pode ser considerada de mau gosto, mas que dificilmente pode sequer ser classificada como chocante no contexto em que foi proferida. Esteve por isso mal o deputado Carlos Abreu Amorim quando afirmou que as declarações de Santos Silva tinham “mais relevância” do que as que levaram à demissão de João Soares, quando era ministro da Cultura, por ter ameaçado dois críticos com “bofetadas”.

Mas o vice da bancada social-democrata esteve ainda pior quando alegou que o governo estaria a desconsiderar um órgão constitucional como a concertação social ao “qualificá-la como uma feira de gado”. De facto, importa recordar que as feiras de gado têm uma longa tradição e têm sido, ao longo de séculos de existência, não só um muito significativo factor de dinamização económica mas também um importante pólo de interacção comunitária e cultural. Um bom exemplo é aliás a Feira de Ponte de Lima, no Distrito de Viana do Castelo, por onde Abreu Amorim foi eleito.

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As feiras de gado – à semelhança das feiras em geral – têm também a seu favor o facto de assentarem em transacções voluntárias. A exigência do livre consentimento das partes envolvidas constitui aliás uma muito melhor garantia dos efeitos socialmente benéficos das trocas do que a realocação de recursos por via centralizada com base na tomada de decisões colectivas na esfera política. É certo que, como em outras actividades, também no comércio há negociantes desonestos. E que, em casos nos quais haja fraude, má fé ou outras práticas não éticas os benefícios do comércio ficam em causa.

Mas, como já há alguns séculos atrás assinalava o escolástico Domingo de Soto, devemos ter presente que os vícios dos comerciantes não são próprios do comércio, mas das pessoas que o exercem. Nessas situações é importante que o sistema judicial actue de forma célere e eficaz e também que os mecanismos de sanção reputacional sejam potenciados ao máximo para penalizar os maus comerciantes. Em qualquer caso, é geralmente menos difícil penalizar e responsabilizar os comerciantes desonestos do que os políticos desonestos. Também por isso não seria necessariamente mau que a concertação social e outros processos de decisão colectiva por via política fossem mais parecidos com feiras de gado.

Professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa