10 de março de 2019. Um Boeing 737 Max 8 despenha-se na Etiópia. Entre as vítimas encontra-se Shimon Daniel Reem Biton. Tem nacionalidade israelita, mas sonha em obter o passaporte português, cujo processo de obtenção já iniciara, aguardando uma decisão, quanto ao seu certificado de sefardismo, por parte da comunidade judaica do Porto, cidade para onde tencionava mudar-se com a família. Mesmo depois da sua morte, a irmã Yaffa quis continuar o seu processo de nacionalidade. Esta história parece bela demais para ser verdade. A Conservatória dos Registos Centrais, todavia, possui toda a documentação e troca de correspondência referentes ao caso.

A caridosa mãe de Shimon, Sol Krispin Biton, é uma das maiores referências da cidade de Ashdod em matéria de bondade. Esta extraordinária família que outrora ajudou a construir um grande Portugal, foi forçada a abandonar o país contra a sua vontade e depois, já em terras de África, onde tinha reconstruído a sua vida, certamente com grandes dificuldades, por pouco não foi convertida à força outra vez, por D. Sebastião.

Foi muito emocionante para mim saber que a comunidade judaica do Porto e a família Kadoorie dedicaram o filme “A Luz de Judá” a este grande patriota. Os judeus que chegaram a Sefarad há 2000 anos e que por séculos conviveram com romanos, germanos, muçulmanos e visigodos-cristãos faziam parte da tribo de Judá. Nunca representaram uma ameaça para ninguém e, no entanto, foram sempre tidos como estrangeiros ligados a negócios e a manhas. Eis a explicação da proposta que pretende alterar a lei da nacionalidade, realizada na sombra, durante a pandemia, com truques parlamentares, boataria e violação do princípio da igualdade.

Acusaram-se o Canadá e os Estados Unidos da América de terem manifestado “preocupação” com os passaportes dos sefarditas portugueses: 16750 passaportes desde 2015, ou seja, 0,3% do número de naturalizados europeus nos 27 estados membros. É possível acreditar nessa “preocupação”? O Canadá, que nunca outrora expulsou os judeus, tem protocolos com as comunidades judaicas locais para promover a imigração judaica e tratar do seu bom acolhimento.

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A proposta de alteração da lei deixa subentendido que os judeus sefarditas merecem um tratamento de excepção. O argumento é incorrecto. Os muçulmanos, sempre invocados quando dá jeito, e outros mais, espalhados por todo o antigo Império português, podem pedir a nacionalidade portuguesa, contanto que provem que são descendentes de portugueses ou de comunidades de origem portuguesa. É só esta a dificuldade. Não há mais nenhuma. O n.º 6 do artigo 6.º da lei da nacionalidade é de fácil leitura e o n.º 7 apenas confirmou que os sefarditas têm esse direito também.

O que mais releva na proposta e nas intenções que lhe subjazem é a sonegação dos efeitos positivos da lei de 2013 e 2015, os “bons resultados” a que o Bispo do Porto se referiu há poucos dias. Que efeitos são esses? No mês passado, o Presidente da B’nai B’rith International enunciou-os exemplificativamente em carta dirigida ao Presidente da República Portuguesa. Foram publicados no semanário Expresso. São conhecidos. Não constam da proposta porque poriam em causa as generalidades em que assenta a mesma.

Chegará a Portugal, muito em breve, Yaffa Biton, a irmã do patriota Shimon que deixou cinco filhos órfãos que querem ser portugueses. Prepara-se para viver e trabalhar no Porto integrada na comunidade local. Não é preciso esperar 500 anos para ver os efeitos da lei. Toda a comunidade judaica nacional está em crescimento, o qual, porém, não agrada a todos, que sempre viram na lei (e não nos passaportes) uma lei de conveniência, apenas simbólica, nunca para trazer judeus demais.

Em matérias que se relacionam com judeus, sempre haverá mais espavoridos do que convencidos. Não ponho em causa o irrepreensível portuguesismo dos indivíduos que agora saltam a terreiro para defender o que não tem defesa. Digo, porém, que é impossível explicar a “tradição de pertença” a Sefarad a quem intimamente rejeita a população judaica, a quem nunca a liga a bons sentimentos.

Sou português, um dos 16750 sefarditas naturalizados desde março de 2015. Nunca encontrei estruturas mentais antissemitas nas ruas de Portugal que visitei já muitas vezes. Os meus interlocutores, homens simples ou cultivados, ficaram sempre encantados com as histórias das famílias sefarditas que lhes contei. Conheci candidatos nonagenários que não tinham sequer condições para apanhar um avião. O que diria de tudo isto o meu querido amigo Shimon Daniel Reem Biton?