Quando andei no liceu, nos manuais de Português era costume dar-se esta frase d’A Relíquia como exemplo de figura de estilo: “Adélia, estendida num sofá, de chambre e em saia branca, com os chinelos caídos no tapete, fumava um cigarro lânguido”. É possível que continue a usar-se este excerto no ensino de recursos estilísticos, mas já não será como exemplo de hipálage, a atribuição a um objecto (cigarro) de qualidades que pertencem a outro (Adélia). Agora, será como exemplo de oxímoro. Com a nova lei do tabaco, uma fumadora como Adélia nunca poderá ser lânguida. Para conseguir palmilhar quilómetros até alcançar um estabelecimento autorizado a vender cigarros, Adélia vai ter de ser uma triatleta. O oposto de lânguida. Não terá os braços brancos e macios, antes rijos e bronzeados, e não aceitará os pastéis que o Raposão lhe oferece, por estar a fazer jejum intermitente e calma aí com os hidratos. Estendida no sofá, Adélia? Só depois de um treino de crossfit para preparar a próxima expedição à tabacaria.

Confesso que não percebo as lamúrias de quem está contra a tentativa do Governo em dificultar a vida aos fumadores. Um povo que fazia milhares de quilómetros em barquinhos, só para ir à Índia buscar temperos, agora queixa-se por ter de andar um bocado para comprar cigarros? Não sejamos mariquinhas.

O que o Governo está a fazer é um uso judicioso dos recursos disponíveis. Há menos 11 meios aéreos de combate a incêndios do que estava combinado? Então, para acautelar, cria-se uma lei para fazer com que haja menos pessoas com isqueiros. Faltam quase mil nadadores-salvadores? Nesse caso, proíbe-se o fumo nas praias, para que os banhistas tenham bom pulmão e aguentem muito tempo na água até chegar ajuda.

Compreensivelmente, o Governo está preocupado com o peso do tabaco no SNS. É por isso que esta medida se insere na política que o Ministério da Saúde vem seguindo há 8 anos: o tabaco não foi proibido, foi é cativado. Os cigarros existem, estão à venda, podem-se fumar. Só que é muito difícil chegar a eles.

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Por mais que os fundamentalistas barafustem, o direito de fumar não se sobrepõe ao direito ao bem estar de terceiros. A nossa sociedade assenta no equilíbrio entre a liberdade individual e o interesse colectivo. Nomeadamente, daquele colectivo a que chamamos “Governo” e que precisa de um bode expiatório que o absolva das suas responsabilidades na trapalhada que é o SNS. O fumo passivo é a desculpa para a sua passividade.

Nem todas as críticas são justas, porém. Há situações em que o Ministério da Saúde chegou a alterar procedimentos para acomodar os fumadores. Com esta nova modalidade em que uma grávida tem de fazer 120 km até à maternidade, com 6 ou 7 desvios no caminho para bater com o nariz na porta de urgências, é fácil incluir outra paragem para comprar os cigarros que o futuro papá precisa para acalmar os nervos. Só por má vontade é que nos podemos queixar.

Sim, não se pode fumar ao pé de hospitais, mas a verdade é que já há uma série de outras actividades que não se podem fazer ao pé de hospitais. Ainda ontem uma reportagem da SIC falava nisso. Por exemplo, ao pé do Hospital da Guarda não se pode ter palpitações, porque uma consulta de cardiologia demora 1193 dias. E perto do Hospital de Leiria não é permitido ouvir-se vozes na cabeça, porque uma consulta de neurologia só para dali a 636 dias. Resta rezar para que quem precisa destas consultas não seja daquelas pessoas que aproveitam o tempo de espera para fumar um cigarrinho.

O argumento de que o fumo sobrecarrega o Serviço Nacional de Saúde abre um precedente. Se o Governo começa a proibir substâncias cujo uso acaba por conduzir a pessoa ao SNS, onerando-o injustificadamente, é só uma questão de tempo até ter de interditar o oxigénio. Enquanto uma pessoa o consumir é um utente em potência. Em Portugal, respirar dá despesa ao SNS. Preparemo-nos.