Tem-se tornado cada vez mais evidente que o Brexit, elevado nos media a vitória da vontade popular, foi uma grande derrota da democracia. Já se sabia da violação dos procedimentos próprios de uma república democrática – uma decisão de soberania nacional foi legitimada por maioria simples num referendo que, na prática, dividiu a população em duas metades (em vez de uma votação a dois terços, como devem ser decididas as questões de soberania). Agora, foi exposto também o logro na base do acordo para a saída do Reino Unido: a campanha eleitoral pró-Brexit convenceu os britânicos a votar a favor de algo que, na realidade, não irão obter. Ou seja, meio país foi enganado.

Recorde-se o teor dos três principais argumentos dos conservadores que defenderam o Brexit – pondo de parte os apelos emocionais, nacionalistas e anti-imigração de Farage (UKIP). Primeiro, era uma questão de soberania – as decisões no seio da União Europeia limitavam a margem de decisão britânica em áreas que muitos consideram fundamentais (entre outras: competitividade, propriedade intelectual, agricultura, imigração). Segundo, os custos da regulação europeia, por via das limitações que impunha à concepção de novos produtos – há milhares de normas a cumprir e a sua alteração depende da obtenção de consensos. Terceiro, as verbas orçamentais transferidas do Reino Unido para a União Europeia (e posterior redistribuição pelos estados-membros, incluindo pelo próprio Reino Unido) poderiam ser melhor investidas internamente.

Ora, à luz do acordo inicial de saída do Reino Unido, assinado há dias, o que conseguiram os britânicos? Muito pouco. Do ponto de vista da soberania, os tribunais europeus mantêm uma superintendência por um prazo de oito anos (e, quem sabe, talvez ainda mais). Mais: não é plausível que o Reino Unido possa decidir à la carte a sua relação com a UE, pelo que, se pretender liberdade de circulação dos seus produtos terá, também, de garantir livre circulação de pessoas (ou seja, uma questão de soberania). Do ponto de vista da regulação europeia, permanece a questão do mercado único europeu: os britânicos querem continuar a fazer parte, como tantos têm sugerido que sim? É que, se for esse o caso, cumprir as regulações europeias permanecerá uma necessidade. E do ponto de vista financeiro, é um completo tiro no pé: não só o Reino Unido recebia (e deixará de receber) contribuições europeias (que eram investidas no país) como agora terá uma conta para pagar que ascende a cerca de 45 mil milhões de euros. Ainda falta negociar quase tudo, mas parece que o único resultado expectável é este: o Reino Unido continuará sujeito à legislação e às obrigações europeias, embora sem poder para as influenciar.

Não se vê como o desfecho do Brexit possa vir a ser benéfico para os britânicos. Até porque, para além das consequências directas, o impacto da cisão na economia britânica será tremendo (e, parece, não foi devidamente avaliado). Como é que se chegou aqui? Simples: caindo no populismo guiado por emoções, cedendo ao irrealismo das soluções simplistas, entregando o debate público às redes sociais, confundindo insatisfação com repúdio pelo projecto europeu, e convencendo a população de que a negociação levaria a um entendimento que, na realidade, é impossível. No fundo, através de uma deturpação do debate público que fragilizou a democracia britânica. Eis, portanto, a lição do Brexit: ignorar os procedimentos republicanos e autorizar a manipulação do debate público só serve para, sacrificando o povo e instrumentalizando o voto popular, legitimar uma agenda política. E como o golpe fez escola, em breve veremos quem, na Catalunha, aprendeu esta lição.

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