Quando alguns ora clamam pela ação do Tribunal Penal Internacional, esquecendo discussões já antigas sobre a efetividade e legitimidade do Direito internacional Público. Pior, quando este tem carácter sancionatório e limites que resultam do seu próprio Estatuto (vulgo Estatuto de Roma). Recordemos que nos Estatutos do Tribunal Penal Internacional (TPI) se reforçam os objetivos e princípios consignados na Carta das Nações Unidas. Em particular, que todos os Estados se devem abster de recorrer à ameaça ou ao uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado, ou de actuar por qualquer outra forma incompatível com os objetivos das Nações Unidas, mas apenas — sobre as pessoas responsáveis pelos crimes de maior gravidade com alcance internacional (artigo 1º). Ou seja, apenas sobre pessoas singulares, e não sobre Estados, como alguns afirmaram ao dizer que a Federação Russa seria julgada no TPI, e apenas de forma complementar às jurisdições penais internacionais: quando estas não queiram ou possam julgar.

Um outro limite, particularmente relevante, reside no facto de que o Tribunal poderá exercer os seus poderes e funções, nos termos do indicado Estatuto “no território de qualquer Estado Parte e, por acordo especial, no território de qualquer outro Estado”, segundo o artigo 4º/2, não sendo nem a Rússia, nem a Ucrânia “Estado parte” por não terem ratificado os Estatutos do TPI, muito embora em 2014 e 2015 a Ucrânia tenha atuado no sentido de o reconhecer. Creio ficar assim clara a necessidade de separarmos os sonhos da realidade, por muito que esta repugne a nossa sensibilidade.

Aliás, relativamente ao TPI, os seus críticos sempre apontaram a dependência face ao Conselho de Segurança da ONU (onde a Rússia tem direito de veto, direito concedido aos cinco membros-permanentes do Conselho de Segurança — China, França, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos), colocando em crise a separação entre estes poderes com motivação política num órgão jurisdicional penal. Assim, será manifestamente improvável que o Conselho de Segurança, agindo nos termos do capítulo VII da Carta das Nações Unidas, venha a enunciar ao procurador qualquer situação em que haja indícios de ter ocorrido a prática de um ou vários desses crimes. Igualmente, a despeito da iniciativa de outro Estado parte ou do Procurador (artigos 14º e 15º do Estatuto de Roma), a sua ação não terá a mesma solidez se comparada com uma iniciativa promovida pelo Conselho de Segurança da ONU.

Como nem todos os países aceitaram fazer parte da jurisdição do Tribunal Penal Internacional, mercê da soberania e autonomia daqueles, o TPI só pode acusar cidadãos nacionais de um país parte, que tenha aceitado aquela jurisdição, por crimes praticados num país parte, o que no caso concreto não ocorrerá, e levará à sua inadmissibilidade, segundo os artigos 17º, 18º e 19º do Estatuto de Roma.

Assim, não estando “sob a alçada” do Tribunal Penal Internacional, poderemos depositar esperança na criação de Tribunal(ais) de âmbito internacional, um pouco à imagem dos de Tóquio e de Nuremberga, após a Segunda Guerra Mundial. Mais ainda, poderemos admitir que, em função da evolução da guerra e da própria política interna russa, os tribunais nacionais ucranianos e russos venham a julgar os crimes praticados no respetivo território. Até lá, vivemos entre o sonho e a realidade, cientes de que um sistema punitivo sem garantias de respeito de liberdades e garantias será sempre um risco acrescido para a Pessoa.

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