Ainda estou surpreendido. Como é que nunca nos tínhamos lembrado dos “erros de percepção mútuos”? O jeito que nos tinha dado a todos o conceito em tantas e infelizmente tão variadas circunstâncias da vida… “Desculpa lá, foi um erro de percepção mútuo, às vezes acontece.” Os incómodos, até as humilhações, de que teríamos, assim tão simplesmente, com tão breves palavras, escapado… Mas tudo tem a sua razão de ser. O que é verdade é que os saberes de que dispomos, nomeadamente a filosofia, não ajudam. Inexistem, como agora se diz, no capítulo. A filosofia fala da mentira pura e simples, da má-fé, da mentira interior, da mentira orgânica, e de outras coisas assim. Mas, pela minha parte, juro que durante a vida inteira não encontrei uma só linhinha, nem numa nota de rodapé, sobre “erros de percepção mútuos”, essa espécie de desarmonia pré-estabelecida cuja existência agora nos foi revelada. Dei-me até ao trabalho de telefonar a pessoas especialistas destas coisas: nunca tinham ouvido falar. Imperdoável. Talvez em tratados de psiquiatria?

O conceito, no entanto, merece ser explorado. É muito mais interessante do que o de “pós-verdade”, agora tanto na moda, e Portugal, ditoso país, pode-se gabar de ter oferecido ao mundo um instrumento teórico decisivo que ajudará sem dúvida a revolucionar o paradigma dominante no que respeita ao estudo das relações sociais. Como dizia dantes Marcelo: quando queremos somos os melhores. E é notável que tão relevante contributo tenha tido origem no cérebro de um economista. Qual “lúgubre ciência”, qual quê! Carlyle devia estar a gozar. Gaia ciência, prodigiosa disciplina, admirável saber que fertiliza o pensamento em todos os domínios. A interdisciplinaridade funciona mesmo. E quem é, em última análise, responsável por este formidável parto conceptual? Não há razão para duvidar: António Costa, é claro. Foi certamente ele que, à sua maneira, extraiu do cérebro de Mário Centeno, por artes de maiêutica, a verdade que por dentro, ignorada, ele lá tinha, e que, aposto, preferia manter de si desconhecida: a existência de erros de percepção mútuos. Mas também é verdade que ninguém o obrigou a ir para onde está e a ser conduzido por quem o conduz.

Procuremos elucidar a nova doutrina. Os erros de percepção mútuos dão-se, como o nome indica, num contexto social. O sujeito encontra-se obrigatoriamente envolvido num diálogo. Este ponto, sendo obviamente importante, é no entanto ainda muito geral. Convém especificar. Em muitos diálogos, aquém das condições ideais de comunicação, há erros de percepção relativos à posição do outro. Um exemplo, respeitando por simplicidade ao vil metal, porque é de supor que é uma matéria que preocupa muitos (a mim preocupa-me) e que interessa a toda a gente. Se alguém se propõe vender a outra pessoa por dez mil euros uma mina de ouro no Oklahoma, e se se trata de um vigarista, a outra pessoa pode incorrer num erro de percepção acreditando na bondade da sua proposta e na excelência do negócio. Como se sabe, acontece, e há grupos de cidadãos que se dedicam a esse comércio com engenho e sucesso. Mas falta, é fácil de ver, a mutualidade, a reciprocidade, a correspondência. No contexto dialógico, trata-se, poder-se-ia dizer, de um erro de percepção unilateral ou solitário.

É portanto a mutualidade que é necessário inquirir. Como é que ela funciona? Voltemos ao exemplo anterior: um vigarista tenta vender a outra pessoa por dez mil euros uma inexistente mina de ouro no Oklahoma. Imaginemos que não é apenas o putativo comprador a sofrer do erro de percepção, acreditando na boa fé da sua proposta. Imaginemos que o vendedor acredita que o comprador tem a intenção de lhe pagar os dez mil euros quando, de facto, nada podia estar mais longe do espírito deste: a sua verdadeira intenção é, depois dos procedimentos legais lhe terem garantido a propriedade do terreno, voar muito lampeirinho para os Estados Unidos sem o outro ver um só cêntimo dos irrisórios dez mil euros que colocariam o comprador na posse de uma sólida fortuna. Obtém-se assim um verdadeiro erro de percepção mútuo. A condição de reciprocidade encontra-se plenamente satisfeita. Trata-se de um erro de percepção mútuo em sentido estrito, com a característica de os dois dialogantes se encontrarem numa situação de perfeita simetria: cada um pretende enganar o outro.

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Há, no entanto, pelo menos uma variante possível. Visitemos de novo a suposta mina de ouro. Imaginemos que um dos participantes no diálogo a quer vender a outro, sendo muito sabedor da sua inexistência, e o outro a quer efectivamente comprar, tendo realmente a intenção de pagar os dez mil euros. Estamos aqui face ao já mencionado erro de percepção solitário. Mas acrescentemos um detalhe suplementar. Imaginemos que quem a quer vender acredita que, tendo o negócio sido firmado e tendo o outro descoberto que a mina de ouro (volto à recente palavra) inexiste, o outro vai achar tudo muito natural e até simpatizar, por uma razão ou outra, com a engenhosa artimanha de que foi vítima – quando tal não é efectivamente o caso. Verificamos aqui um erro de percepção mútuo num sentido derivado, um erro de percepção mútuo assimétrico. Há um erro de percepção mútuo que é assimétrico porque um dos participante do diálogo se encontra de boa fé, o mesmo não se passando com o outro, estabelecendo-se a mutualidade pelo facto daquele que não se encontra de boa fé cometer um erro de percepção ao supor no outro uma indiferença pelo seu acto que não se verifica, longe disso, na realidade.

É legítimo supor que o conceito de erro de percepção mútuo corresponde a um avanço teórico sobretudo neste segundo caso. O conjunto de fenómenos que descreve é vasto, a sua simplicidade e a sua inteligibilidade, como em qualquer boa hipótese, aliam-se ao seu potencial heurístico e à sua fecundidade explicativa. Além de tudo, a sua actualidade é indiscutível. Dado o vasto número de exemplos que caem sob o seu escopo, o desenvolvimento do conceito era até urgente. Quantos de nós não somos aldrabados (não estou a pensar forçosamente em dinheiro: falo de expectativas criadas, por exemplo) por pessoas que cometem o erro de percepção de supor que gostamos de ser aldrabados ou que vamos aguentando a vigarice distraídos? Os erros de percepção mútuos, na sua vertente assimétrica, são quase a regra da nossa actual vida comum: Portugal inteiro encontra-se a viver em regime de erros de percepção mútuos. Como se pode viver muito sempre assim é outra questão, que não discuto aqui. Sem querer diminuir em nada a contribuição conceptual do ministro das Finanças, quase se poderia dizer que ele se limitou a teorizar a relação da actual prática governativa com os cidadãos portugueses. É mesmo uma filosofia da praxis. E das boas, porque toda ela edificada sobre um saber de experiência feito.

O único problema é que, assim entendido, o conceito de erro de percepção mútuo perde um pouco da sua originalidade, já que mostra a sua dependência por relação a noções de que tanto a filosofia como a linguagem corrente se servem em abundância, como boa fé, má-fé, mentira e por aí adiante. Para não ir mais longe no plano da linguagem. Mas a construção de uma teoria da vida em sociedade tem de partir, de uma ou de outra maneira, da nossa experiência comum. Desgraçadamente, algum empirismo não é nunca evitável. E sem dúvida que o ministro Mário Centeno e o seu mentor António Costa terão ainda tempo para oferecer versões mais sofisticadas desta sua fundamental contribuição para o entendimento da sociedade. O céu é o limite. Para já, encontramo-nos todos agradecidos e esperançosos. Até porque a teoria, mesmo na sua presente forma imperfeita, cola à realidade. Os erros de percepção mútuos não relevam da psicologia: são um facto social. Não inexistem. O Governo encarrega-se de no-lo mostrar regularmente.