Foi fácil – e justo – deixar cair a nossa ira em cima de António Costa pelas medidas que ele apresentou como “ajudas” para suavizar o efeito da inflação. Estas que “dão” 50 euros por cada criança, mais 125 por cada pessoa (ou contribuinte?), mais metade do valor de uma pensão aos pensionistas, e uns tostões na conta da electricidade. Mas que afinal, contas feitas a dois ou três anos, as “ajudas” reais, ou benefícios, quando existentes, são muito pequenos; e o que esta esmola verdadeiramente esconde é uma maneira de alterar a fórmula de cálculo das pensões. Ou seja, estamos perante um conjunto de cortes para reduzir a despesa, com início já, a partir de Janeiro próximo; uma redução de carácter permanente e, de acordo com a verdade da nossa economia, uma redução sustentável.

Tudo indica que sim, estes cortes eram necessários. A economia fraquíssima, o problema demográfico, e o preço previsível dos empréstimos para dívida pública, com a inflação acima de nove porcento, não permitiam continuar a disfarçar.

Passo por cima da maneira fraudulenta como António Costa se refere à coisa, chamando-lhe “Famílias primeiro” e apresentando as medidas como se elas traduzissem um benefício directo para os cidadãos, quando afinal quase todos saem prejudicados. É nisto – e só nisto – que consiste a famosa “habilidade” de António Costa, interpretação gentil que o Portugal do debate público faz das maneiras do primeiro-ministro, confundindo “habilidade” com falta de escrúpulos. O grande erro de António Costa não é este, nem é de agora. Esse erro está na política que ele exerceu nos últimos sete anos, desde 2015, quando armou a geringonça dele.

Para compreender como isto aconteceu, é preciso recordar alguns postulados. Em primeiro lugar, o entendimento entre os partidos só seria possível se beneficiasse todos, que é como quem diz, o Partido Socialista, o Partido Comunista e o Bloco de Esquerda. Pelo menos no curto prazo, ou de acordo com as insuficiências que estes partidos sentiam. Em segundo lugar, o PC não tem o seu poder assente no número de deputados à Assembleia da República; tem, sobretudo, nas autarquias, nos sindicatos, e no aparelho do Estado, ou seja, na grande massa da função pública e nos seus cargos dirigentes. E também na alegada “cultura” e no lumpen do jornalismo. Por seu lado, o Bloco de Esquerda praticamente não tem representação autárquica nem poder executivo. O poder do Bloco assenta muito no ensino, nas universidades, em parte na saúde e em grande parte nos instrumentos mediáticos. Tem mais comentadores na televisão do que vereadores no país inteiro. Todos estes partidos vinham saudavelmente muito amolgados dos anos da tróica e de Passos Coelho com Paulo Portas.

Isto explica as três grandes políticas iniciais que a extrema-esquerda exigiu do PS. Políticas a que o PS foi obrigado a ceder em troca de apoio parlamentar, e a que chamou “reversões” (que efectivamente foram), quando não chamou “virar a página da austeridade” (e outras expressões de populismo e baixa retórica). Aos transportes públicos foi aplicada a reversão da privatização da TAP; e o fim das concessões do Metro, da Carris, e das outras empresas operadoras de transportes. À educação foi aplicado o fim dos contratos de associação com as escolas privadas – quase todas da Igreja, que de resto assistiu imperturbável. E na saúde impuseram o fim das parcerias, de que é exemplo vexante o Hospital de Braga; tinha excelentes indicadores e passou a prestar um péssimo serviço, muito bem arrumadinho na sua semana de 35 horas.

Três obras de arte política que subiram imensamente a despesa pública e fortaleceram o poder e a dependência do Estado. Quando o que o país precisava era de desenvolver a economia. O que implicava impostos mais baixos, ou pelo menos uma fiscalidade mais previsível. Implicava igualmente o reforço da liberdade económica, com mais vitalidade e mais concorrência, e menos dependência do Estado e dos poderes públicos. Nada disto se fez ou faz com a esquerda, porque tudo isto vai contra os interesses directos da esquerda e da extrema-esquerda.

Hoje temos um país empobrecido e sem robustez para enfrentar um grave problema internacional. A conta dessa responsabilidade, essa sim, está no negócio político de António Costa. Portugal devia agora levantar-se para o aplaudir de pé.

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