Pela primeira vez em muitas décadas, há em Portugal um plano ferroviário e um contexto favorável a investimentos na ferrovia. Não só há pela primeira vez um plano ferroviário, como este até é bastante equilibrado, considerando factores vários, ponderado, discutido e maturado. Há apenas uma falha significativa, que é a falta de uma linha ferroviária pesada entre Guimarães e Braga, que ainda pode ser corrigida. O aspecto que falta para de facto vermos Portugal apanhar algum do imenso atraso que acumulou na ferrovia, é mobilizar os meios financeiros para começar a implementar o plano e preparar as empresas como a IP e a CP para tirarem o melhor partido dos investimentos que venham a ser feitos.

Veio a público recentemente mais um documento de um grupo de pessoas, que tem feito muito barulho no espaço público desde há muitos anos em torno da questão da bitola, com manifestos vários e muitas vezes usando um tom conspirativo e apelando aos piores instintos, ao implicar proteccionismo, interesses obscuros e até corrupção. O que esta questão da bitola faz, é simplesmente descredibilizar os investimentos e criar confusão na opinião pública, num momento em que é preciso fazer força para que se avance para o que já deveria ter sido começado há 30 anos.

No sector do transporte de mercadorias, a bitola é uma não questão e não vou perder muito tempo com ela neste artigo, posso a ela voltar noutro artigo se necessário. No sector do transporte de passageiros será no máximo um dilema. Que os poucos técnicos ferroviários do grupo encerrem esse dilema sob acusações de proteccionismo e pensamento retrógrado, só pode ser entendido como má fé ou falta de noções básicas sobre ferrovia. Vou então tentar explicar o dilema da bitola. Se a nova linha de alta velocidade (LAV) Valença Lisboa fosse feita em bitola internacional, implicava as seguintes opções:

  1. a nova linha seria uma ilha ferroviária, sem acesso aos centros urbanos de Aveiro, Coimbra e Leiria (eventualmente Lisboa) ou custos altíssimos para construir linhas em bitola internacional em túnel.
  2. aquisição de cambiadores de bitola em todos os pontos de acesso à rede convencional e aquisição de comboios com eixos variáveis, aqui sim, uma questão séria de livre concorrência, dado que apenas os Espanhóis Talgo e CAF têm essa tecnologia e não estão sequer no top 5 do mercado mundial de veículos ferroviários.
  3. mudança completa e imediata, ou num prazo curto, do resto da rede e de ‘bogies’ nos veículos todos. Esta hipótese é tão absurda que não vou fazer o leitor perder mais tempo com ela.

Eu entendo que este dilema foi bem resolvido. Construir a LAV em bitola ibérica permite ter os comboios de alta velocidade a chegar aos centros urbanos de Aveiro, Coimbra e Leiria (e eventualmente Lisboa) sem complicar a operação com cambiadores de bitola, e sem tornar o mercado Português de comboios um feudo de dois fornecedores estrangeiros. É curioso que os signatários do manifesto se preocupem com proteccionismo a operadores nacionais, mas ignorem a hipótese de criar um feudo da CAF e Talgo em Portugal.

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O aspecto mais curioso de invocar o exemplo de Espanha, é que esta usou a bitola como factor de proteccionismo, como aliás, os nossos amigos Franceses, Alemães, Italianos, Espanhóis e outros fazem com mestria, dos quais não me consta que se orgulhem de ser “bons alunos”. Espanha, quando construiu a primeira LAV (Madrid Sevilha em 1992) não tinha a tecnologia necessária para o fazer sozinha e recorreu fornecedores de comboios e sinalização estrangeiros. Mas ao construir toda a rede LAV em bitola internacional e com ligações à rede convencional através de cambiadores de bitola, obrigou a que, para certas ligações, apenas pudessem operar comboios de eixo variável, o que convenientemente obrigou e obriga à aquisição de comboios aos espanhóis da CAF ou Talgo, que entretanto desenvolveram a tecnologia de eixos variáveis necessária. É o caso das ligações de Madrid à Galiza, dado que a linha Vigo Corunha, inaugurada em 2011 e 2015, foi construída em bitola ibérica.

O que temos aqui com esta questão da bitola é mais um exemplo do “bom alunismo” nacional. Com a intenção de seguir os melhores exemplos do estrangeiro, não entendendo os factores específicos do nosso território, ser mais papista do que o papa, e sugerir para o país um caminho que, na melhor das opções (opção 2 explicada acima) seria pior do que a decisão tomada. As outras opções vão de péssima (opção 1) a absurda e megalómana (opção 3).

No meu caso, comecei a minha carreira na ferrovia no estrangeiro e as minhas ligações às empresas ferroviárias nacionais, limitam-se a ter sido cliente da CP enquanto estudei em Aveiro e quando vivi em Lisboa, se descobrirem alguma ligação minha aos “interesses” agradeço que me informem. Terei todo o gosto em descobrir eventuais familiares e conhecidos ferroviários, de cuja existência desconheça.

Caso os signatários queiram desenvolver as linhas de um plano com datas e alguns números, ao invés de irresponsavelmente atirarem factóides para a praça pública sob um manto de acusações infundadas, estarei eu aqui e certamente outros para analisar com atenção as vantagens e desvantagens de tal plano. É muito fácil esconderem-se atrás da capa de paladinos da verdade contra os “interesses”, quando na verdade se tratam de questões complexas, que certamente a maioria dos signatários não entendem de forma suficiente. No “cá fora” que os autores tanto parecem valorizar, esta questão já tinha sido escorraçada ao som de risadas e apupos.