1 Os nossos filhos não estão de férias; mas também não estão nas aulas. Os próximos meses não serão, sobretudo, de “estudo acompanhado”. Como aquilo que temos para lhes dar não será, exactamente, ensino doméstico. A quarentena é um período tão híbrido de experiências e exige de todos um esforço tão grande que, já na terça-feira, vai dar origem a uma nova “telescola”. Que, não sendo a solução “ideal” para responder ao confinamento a que os estudantes estão obrigados, será a (única) solução possível para que, em tempo recorde, eles não estejam sem “ir à escola” entre Março e Setembro.

2 Por mais que esta “telescola” preencha o seu espaço na RTP Memória, tem muito pouco a ver com a outra telescola, de “antigamente”. A primeira, tinha programas de televisão e grupos de alunos aos cuidados de um professor que fazia a “ponte” entre os conteúdos dados, a aprendizagem de cada um e as avaliações. Esta, tem as escolas, cada uma a seu modo, a fazer o seu trabalho da forma possível e a usufruir dos conteúdos suplementares trazidos aos estudantes pela televisão. Com os pais a desempenhar, pelas consequências óbvias do confinamento, o papel de ponte entre a escola e os filhos. E os professores que “melhor conhecem o conjunto do percurso educativo de cada aluno” a avaliá-los. Tomando em consideração o impacto que esta medida terá em todos os estudantes, ela poderá não representar a telescola de “antigamente”. Mas, no seu conjunto, não será só “estudo em casa”. Será, muito mais, escola em casa.

3 Apesar da sua benevolência, esta solução está longe de colocar as crianças em pé de igualdade. Sendo generosa na sua intenção, arrisca-se a acentuar (muito) mais as desigualdades das crianças no seu acesso à escola e ao conhecimento. Porque os recursos informáticos individuais que recomenda e os meios de comunicação que requer não estão, de facto, ao alcance de todos os alunos, por igual. Os números divulgados vão avançando que, do milhão e duzentos mil alunos em casa, haverá 200 000 alunos sem acesso a computador e sem rede. Se, de tudo isto, destacarmos as crianças com “necessidades educativas especiais”, algumas sem os meios adequados para acompanharem a escola, corremos o risco de as ver, nos seis meses que decorrem entre Março e Setembro, com as suas dificuldades aumentadas.

4 Uma família com dois filhos no ensino básico, por exemplo, que repartam o quarto e, naturalmente, a sala e a cozinha, estando (ainda, por algum tempo) os pais nos espaços comuns da casa em teletrabalho, não tem como conseguir dividir com equilíbrio a atenção pelas videochamadas (que, em certas alturas, serão simultâneas), uma aula pela televisão, mais a resposta às dúvidas de um dos filhos, a necessidade de gerir uma bulha ou um acesso passageiro de “mau génio” de uma das crianças. Isto é, a escola em casa corre o risco de funcionar mais como “aulas de compensação”. E compreende-se que seja, de certa forma, assim. Mas será muito difícil – muito difícil, mesmo – que as famílias, com este compromisso-extra sobre os seus ombros, não se “desequilibrem” mais, em muitos momentos. Porque estão cansadas. Porque começam a não saber para que lado se hão-de virar. Porque 960 000 crianças têm menos de 12 anos e isso vai exigir que um dos pais permaneça em casa, com todo o “pacote” de preocupações que a sua relação com o trabalho lhes irá, também, trazer. E porque se arriscam a ter as escolas a exigir-lhes “coisas” que, se em momentos normais seriam adequadas, nesta altura, correm o risco de se tornar exorbitantes.

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5 Esta conjuntura obriga-nos a aceitar que nem a família é uma escola nem os pais são professores. E será muito menos uma “escola”, na balbúrdia em que, contra a vontade de todos, se transformaram muitas salas deste país. Com os pais e os filhos a manifestarem a agitação própria de quem está em isolamento há tempo demais. Ou seja, é natural que os conflitos escalem. Por outras palavras, quem imagina que, num contexto destes, as crianças estarão atentas – enquanto os pais, “fervem”, ao exigirem-lhes atenção, e enquanto elas saltitam entre a televisão, o computador e os trabalhos de casa – e que irão aprender, consolidar conhecimentos e interligá-los de forma a que tenham sucesso nas suas aprendizagens, estará a ser, muito “perigosamente”, optimista. Não é que os nossos filhos não queiram corresponder ao desafio que lhes colocamos; querem. Mas aquilo que lhes estamos a exigir é demais.

6 Não percam de vista que os nossos filhos na escola e os nossos filhos em casa não são, em circunstâncias normais, sempre “as mesmas crianças”. E que os nossos filhos antes, durante e a seguir à quarentena não serão, seguramente, iguais. Portanto, não lhes exijam aquilo que exigiriam em circunstâncias normais. Não transformem, por favor, a quarentena num período normal de aulas! Nem percam de vista que já há escolas que pretendem, desde já, que os nossos filhos tenham aulas diárias das 9 às 5. E isso não é razoável! Um esforço desmedido – com as crianças fechadas em casa há tempo demais, a tentarem aprender sozinhas no quarto ou sentadas na sala, com a presença física dos seus pais a tutelá-las o tempo todo (estando, eles, também, a trabalhar) tendo, para mais, esta nova “telescola” a garantir um suplemento de ensino à distância – pode dar lugar a excessos. Ou seja, esta quarentena, nalguma casos, pode traduzir-se em mais aulas, ainda, do que os nossos filhos já, antes, teriam. Tendo as mesmas explicações do costume. E mais trabalhos de casa. Tudo isto numa conjuntura muito difícil para todos. Que, feitas as contas, pode não representar os ganhos que todos desejaríamos. Quanto às avaliações, elas não poderão ter, neste pedido, o mesmo significado. Então se os nossos filhos forem adolescentes, por exemplo, um teste será muito mais um “trabalho de grupo” do que uma avaliação individual. E as notas que, entretanto, surgirem não podem ter senão um valor que precisa de ser relativizado.

7 Aceitem que os professores terão sobre eles, nesta altura, níveis de exigência quase absurdos para conseguirem chegar a todos os seus alunos: àqueles a quem darão aulas; e aos outros que, não tendo recursos informáticos, ficarão numa espécie de “terra de ninguém” nessas ajudas. E que, muitos, estarão a tentar mobilizar-se para terem os recursos pedagógicos adaptados a todas estas novas exigências, estando em tele-trabalho. E aceitem que os contactos personalizados da escola com cada um dos seus alunos facilmente fará com que não haja professores que cheguem para tantas “encomendas”. E que tudo isto vai exigir muito bom senso da parte dos pais. Acresce que muitos professores têm, também, filhos em idade escolar. E que vão ter, ainda, os pais a pedir-lhes mais colaboração do que já pediriam antes. Tudo junto, não vai ser fácil!

8 Preparem-se para que o regresso às aulas, em Setembro, não seja fácil para ninguém. Depois de seis meses afastados da escola, dos professores e dos colegas, e com todos os “vícios de forma” que decorrem de estarem tanto tempo fechados – ora em climas um bocadinho “inflamados” ora com condescendências excessivas por parte dos pais – preparem-se para que o “choque” que se venha a dar se estenda por todo o próximo primeiro período. Os nossos filhos estarão entre o excitado e o receoso; estarão um bocadinho “entorpecidos” por terem estado tanto tempo “parados”; e terão, naturalmente, muitas carências de conhecimentos. Logo, a escola vai ter que os recuperar para a aprendizagem ao mesmo tempo que quererá introduzir novas matérias. Ou seja, preparem-se para um primeiro período muito difícil para todos. Professores e pais, claro. Mas, sobretudo para os nossos filhos.

9 Não se esqueçam, também, das crianças do pré-escolar. Daquelas que, em seis meses, poderiam ter “crescido” muito mais em meio escolar e que, na transição dos 5 para os 6, com seis meses de quarentena, vão precisar de famílias e de professores com muito bom senso e numa sintonia “premium” na transição para o ensino básico. Se, habitualmente, a dificuldade está em que elas estejam sentadas, desta vez, essa dificuldade será maior. E não se esqueçam daqueles que, com menos de 5, foram “morrendo de saudades” da sua educadora e dos seus colegas e que, quando regressarem, vão ter que passar, outra vez, por reacções que, nalgumas crianças, vos farão lembrar os primeiros meses de infantário.

10 Preparem-se, igualmente, para ajudar os vossos filhos entre os 10 e os 14/15. Aqueles que imaginam controlar todas as “cenas”. Que, por mais que nos tenham a repetir que não estão de férias, estarão a sentir um controle mais adocicado da nossa parte. Que repartem o dia pelas redes sociais, pelas séries e pelos jogos. Que vão reagir duma forma muito “sua” à obrigatoriedade das aulas, aos pais num estado de nervos permanente, a protestar com as horas a que se chega às aulas da televisão e ao aprumo com que se está numa “escola” que permite que se esteja de “pantufas” Que, quando têm o computador aberto, nem sempre estarão a estudar; e ora estão a jogar, ora a navegar pelas redes sociais como “a socializar”. E que tão depressa vão para a cama “a horas” como adormecem de madrugada. Eles vão precisar de algum “músculo” e de uma exigência “mais apertada” da parte dos pais. Porque aos 10 e aos 11 ou aos 12, aos 13 e aos 14 quase ninguém é compenetrado e metódico. Muito menos se um professor se for transformando num “teleprofessor”.

11 Não se esqueçam dos vossos filhos que, agora, estão no 9º ano e que irão transitar para o 10º. Porque se, em circunstâncias normais, essa transição já é “turbulenta”, depois destes seis meses, será mais dura e mais susceptível de os fazer passar, ainda mais depressa, do sonho de se ser “top” numa determinada área de estudo a uma espécie de “pré-reforma” em relação ao entusiasmo por aprender.

12 Não suponham, por favor, que vos tenho estado a tentar traçar um quadro “negro” do que podemos esperar da escola em casa. A intenção não é essa. Mas se a quarentena está a ter o mérito de colocar as crianças, de todas as idades, a manifestar, de forma declarada — e, talvez como nunca — o seu amor pela escola, este confinamento que nos fecha em casa, com a vinda desta “telescola” vai fazer com que o papel da escola e dos professores, aos olhos dos pais, seja, hoje, entendido com mais carinho. E vai levar a que a escola e os professores acolham melhor (do que nunca) a função da família como complemento interpelante da escola. Levando a que pais e professores se respeitem, depois disto, mais, ainda.

13 Foi-se alimentando, desde há muito — e de uma forma trapalhona, acho eu — a ideia de que há crianças que têm vontade de aprender e crianças que são preguiçosas. A preguiça será uma forma habilidosa de ocultar o medo de não se ser capaz de aprender. Ou seja, todos as crianças têm uma ilimitada vontade para aprender. Mas nem sempre os contextos e as pessoas que medeiam a sua relação com a aprendizagem as ajudam. Hoje, este imenso reboliço que estamos a viver irá ser, ainda, mais exigente para elas. E vai obrigar-nos, pelos próximos tempos, a reconhecer que a vontade de aprendermos, muito depressa, muitas estratégias de aprendizagem muito inovadoras poderá nem sempre ir contando com o compromisso de todos para o fazer. A ponto de uns, entre todos nós, aprenderem; e outros parecerem “preguiçosos”. Mas temos pela frente uma oportunidade histórica de, com tudo isto, repensarmos a escola: nos seus conteúdos, nos seus métodos e na forma como avalia. Assim a nossa vontade de aprender com esta “avalanche” conte com todos!