Neste momento, pouco mais de duas semanas em quarentena, há mais de meio milhão de pessoas em lay off levando para casa no máximo 1.905 euros brutos. E cafezinhos, restaurantes, alojamentos locais e pequenos hotéis de economia familiar que não vendem e podem não reabrir as suas portas. Há entre elas, e ao lado delas, pessoas que trabalham por conta própria, os verdadeiros recibos verdes, que estão sem rendimento porque o seu trabalho não se pode fazer à distância e que, até ver, não serão apoiadas. Há taxistas e motoristas, das plataformas de transporte, sem ninguém para transportar. É toda uma base da pirâmide da economia que está sem ou com menos rendimento e com a sombria perspectiva de não o recuperar depois de a quarentena terminar. Nada disto aconteceu em 2011 em Portugal ou a partir de 2007/2008 noutros países, com origem nos Estados Unidos. São os mais frágeis da economia que estão e vão sofrer mais, e não grupos com poder de lobby, com aconteceu em 2011.

A crise de 2007/2008 começa no sector financeiro e bancário – reflectindo a concessão irresponsável de crédito que tem o seu espelho no excesso de endividamento –, contagiou-se à economia, teve inevitáveis impacto sociais e, em alguns países, desencadeou abalos políticos. O primeiro ataque à crise, através de injecções massivas de dinheiro por parte da Reserva Federal, especialmente após o erro da falência do Lehman Brother’s, estava dentro da linha terapêutica deste tipo de crise – estávamos perante destruição de liquidez.

Mas repare-se que ali, nos Estados Unidos, como aqui, na Europa, o epicentro são grandes bancos e, fundamentalmente grandes empresas e Estados soberanos. De um lado os credores – os bancos e os investidores financeiros – do outro lado os devedores – as grandes empresas, especialmente de construção, e os Estado por via da sua dívida. Na altura existia um jogo, muito simples, em que éramos desafiados a bater ou nos banqueiros ou nos devedores, podíamos escolher. Por aqui, na Europa, e simplificadamente, escolheu-se bater nos devedores.

É assim que Portugal, ao lado da Grécia da Irlanda e da Espanha, pertencendo ao grupo dos devedores, vê-se obrigado a financiar-se junto do FMI e de instituições europeias criadas na altura para o efeito. Todos seguem a mesma terapia, conhecida como de austeridade. Perante a “doença” de excesso de endividamento, reflectindo excesso de consumo, a terapia foi reduzir a procura agregada, para usar a linguagem dos economistas.

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Quais foram os mais castigados por essa terapia? Os Estados e, como consequência, os funcionários públicos e pensionistas. Afectadas foram também as grandes empresas que dependiam do Estado ou de grandes quantidades de crédito, como as empresas de construção e obras públicas. E os bancos portugueses, quer por via do emagrecimento do Estado como porque, também eles endividados, deixaram de ter acesso a financiamento e foram obrigados a ter mais capital que no passado. Simplificando e resumindo: os grupos mais afectados são homogéneos, bem identificados e alguns deles muito bem organizados, com capacidade para fazerem ouvir bem alto a sua voz, como os funcionários públicos e até os pensionistas.

Desta vez estamos perante uma origem da crise e efeitos completamente diferentes. A crise nasce de um problema sanitário com efeitos de redução na procura e na oferta. É uma crise económica pura, que se transformará num problema social grave e pode, por sua vez, desencadear uma crise financeira que alimentará ainda mais crise económica. (Um pequenos parêntesis a propósito dos efeitos financeiros: se não quisermos ter de “ajudar” de novo os bancos é melhor deixá-los a identificar quem tem condições para ter crédito.)

Os mais afectados por esta crise estão na base da pirâmide económica, são grupos não organizados de micro e pequenos empresários, trabalhadores isolados ou por conta de outrem em sectores onde não é possível trabalhar em casa. Estamos a falar da rede muito fina da economia. Têm regra geral rendimentos baixos ou muito baixos e não estão organizados em sindicatos ou associações, capazes de falar alto, nem pertencem às lideranças urbanas.

Contrariamente ao que aconteceu na crise financeira, os funcionários públicos e pensionistas, assim como os trabalhadores de grandes empresas – se excetuarmos o caso das companhias aéreas e actividades conexas –  não são minimamente afectados no seu rendimento. Há, no entanto, uma área dos serviços públicos, como a saúde, a polícia e os bombeiros a quem é pedido um sacrifício ímpar, que nenhum dinheiro conseguirá pagar. Se viermos a ser afectados como a Espanha ou a Itália, sofrerá profundamente.

Em termos gerais, esta crise, se nada for feito, tenderá a agravar muito significativamente a desigualdade na distribuição de rendimentos, assim como a reforçar a estrutura dual da sociedade portuguesa, onde uns têm empregos seguros e outros estão entregues à sua sorte.

Quer porque a crise tem origem económica, quer porque a maioria das pessoas que mais violentamente vão ser (e estão a ser) afectadas pelo encerramento da economia estão entre o grupo das mais frágeis, segundo todos os critérios, a terapia tem de ser completamente diferente. E os partidos políticos terão de fazer um esforço para não caírem na tentação de responder aos habituais grupos que lhes garantem vitórias eleitorais.

Os investidores financeiros perceberam desde a primeira hora que a terapia, pelo menos nesta fase, não passava pelos bancos centrais. Sim, são importantes, como se revelou ser determinante a acção do BCE para evitar o aumento do custo do financiamento nos países mais endividados, mas não é deles que se espera a actuação mais importante.

Este tipo de crise exige uma terapia forte do lado orçamental ou, se quiserem os mais ideológicos, uma abordagem keynesiana no seu sentido mais estrito. No limite, e como Keynes terá dito na Grande Depressão, se for preciso dá-se dinheiro às pessoas para abrirem e fecharem buracos. Na época actual não será assim, mas entregar dinheiro como alguns países estão a fazer – entre eles a Alemanha, mas que também se prepara para Portugal, com subsídios a micro-empresas e a trabalhadores por conta própria – não deve estar fora do menu de medidas.

Em Portugal, as medidas que têm sido adoptadas estão genericamente em linha com a terapia exigida por esta crise, assim como comparam bem com o que outros países estão a fazer. Estamos na fase de ceder liquidez para manter as empresas e as famílias em estado de sobrevivência, até que possamos estar na outra margem, com a economia reaberta. Nessa altura poderemos ter de entrar na fase de salvar algumas empresas, entre as quais pontifica a TAP.

Entre as medidas adoptadas em Portugal, destacam-se como muito positivas as de “lay off” e o adiamento dos prazos de pagamento de impostos, assim como todas as iniciativas de prorrogação do subsídio de desemprego e os apoios às famílias afectadas pelo covid-19 ou que tenham de apoiar os seus filhos. Igualmente positiva é a decisão da moratória para os créditos das empresas ou das famílias, que se estima possa gerar 20 mil milhões de euros de liquidez até Setembro, o equivalente a 9,4% do PIB.

As linhas de crédito – que ascendem na sua totalidade a 3460 milhões de euros ou 1,6% do PIB – podem criar problemas futuros para o Estado (três mil milhões têm garantia de Estado) ou para os empresários. Esta semana devem conhecer-se os pormenores de mais 13 mil milhões de euros, em linha de crédito garantida pelo Estado e subsídios directos a pequenas e médias empresas, conforme o que já foi aprovado pela Comissão Europeia.

A medida que pode merecer mais criticas é a que se dirige ao mercado de arrendamento. Não sendo fácil de desenhar uma medida que reduza transitoriamente o encargo das pessoas que viram o seu rendimento reduzir-se por causa da pandemia, transferir esse custo para os senhorios é um erro. É resolver um problema para criar outro, especialmente se estivermos a falar de pequenos senhorios. Mas é preciso esperar para ver como vai funcionar a legislação aprovada na semana passada no Parlamento.

Claro que a situação de crise exigiria mais medidas. Mas temos uma dívida pública, de 117,7% do PIB em 2019, que não aguenta défices públicos muito elevados nem uma recessão que na melhor das hipóteses ficará nos 4%, na pior chegará aos dois dígitos, no cenário de pesadelo aos 20%, conforme os cenários do Banco de Portugal e da Universidade Católica.

Tal como não conseguimos antecipar como vamos estar no fim de Abril, nem mesmo em meados do mês, esta é uma crise que vai ter de ser gerida a cada momento. Não havendo mutualização da dívida e estando todos os países do euro a atravessar a mesma crise, alguma coisa terá de ser feita em relação às enormes dívidas, que se vão gerar com a inevitável terapia que evitar o pior desta recessão vai exigir.

Esta não é uma crise como a de 2008 em que podíamos simplificadamente culpar alguém. O Estado tem de desempenhar aqui um papel fundamental, dentro das suas funções nucleares de garantir a segurança dos cidadãos perante uma pandemia. Tem de se actuar com prudência – e essa tem sido a mensagem do Governo, quando nos avisa que não há dinheiro para tudo. Mas mesmo as políticas mais sensatas vão reflectir-se num aumento da dívida pública. A alternativa é o colapso social que ninguém quer. Mas esta crise não pode ser gerida como a anterior. A seguir a esta fase em que o Estado está basicamente a ceder liquidez teremos inevitavelmente de ter políticas de relançamento da economia e de garantia de solvência de algumas empresas. Com bom senso e racionalidade.