O povo, por ele próprio, quer sempre o bem, mas, por ele próprio, nem sempre o conhece.” (Jean-Jacques Rousseau)

“A natureza, às vezes, é filha da mãe”, brincava Ricardo Araújo Pereira ainda em tempos pré-pandemia. Nada mais certeiro. Um novo coronavírus emergiu, virando o mundo do avesso.

O fenómeno é bem conhecido na natureza: de uma bactéria que chega a um lago à expansão das acácias na nossa paisagem, passando pela mixomatose dos nossos coelhos bravos ou à expansão da peste suína. Uma mutação, a quebra de uma barreira de isolamento, uma introdução, enfim, algo que abala a normalidade vigente, causando muitos transtornos até estabilizar num novo normal, muitas vezes de forma dura…

Muitas foram as vezes em que fomos postos à prova. Sim, o vírus é novo, mas pandemias não são nenhuma novidade. A palavra pandemia vem, ela própria, da Grécia antiga (Pan=tudo+demos=povo). Com efeito, entre pestes e gripes, varíola, cólera, tifo, tuberculose, sida ou ébola, muitas têm sido as batalhas travadas.

E fomos errando, aprendendo, melhorando…

Desenvolvemos universidades, hospitais, um Serviço Nacional de Saúde. Atendemos a condições sanitárias – água potável, esgotos, recolha de lixo, etc. Inventámos exames, fármacos, vacinas, microscópios.

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Os resultados têm sido extraordinários, com doenças praticamente erradicadas, mortalidade infantil mínima, esperança de vida alargada, etc.

Longe pareciam estar os tempos em que era com rezas, rituais, curandeiros e mágicos, que contrariávamos a “vontade dos deuses”.

Estarão mesmo?

Se há algo que abominamos é a incerteza, a falta de controlo. Nesta, como em todas as outras provações da natureza – de incêndios a alterações climáticas -, queremos ação, queremos tomar as rédeas. Seja o que for, queremos que se faça algo.

Assim, de semáforos nas praias a presos libertados, passando por proibições de bebidas alcoólicas, lá nos foram fazendo a vontade. E eis que, 8 meses depois, lá caminhamos para um estado de emergência.

Olhar para trás e ver o que foi o efeito das medidas adotadas, cá e noutras paragens (qual o real efeito de quarentenas, de máscaras, etc)? Atender ao que se vai conhecendo sobre o vírus (padrões de geografia, sazonalidade, etc)? Não parece ser uma preocupação. Interessa, sim, mostrar preocupação e ação na perseguição de controlo, mesmo que ilusório.

O que chamaríamos a um estado de emergência para acabar com os incêndios de verão? Ou para fazer chover quando há secas? Ou parar de chover quando há cheias?

Não passaria de um estado de aparência.

Como este o é também.

O vírus, qual força da natureza, seguirá o seu caminho, alheio à nossa presunção de conseguir o impossível – já D. Pedro V dizia ser a forma portuguesa de encarar os problemas…

Mas se não podemos evitar incêndios, podemos evitar a destruição e as mortes… Se não podemos evitar secas, podemos construir barragens… Se não podemos parar a chuva, podemos sair do caminho da água para evitar os males das cheias…

Podemos e devemos.

Como nos deveríamos antes preocupar com o estado do SNS, com ou sem Covid. Como nos deveríamos preocupar com os idosos nos lares, com ou sem Covid. Como nos devíamos preocupar, até, com coisas mais elementares como os atrasos. Caramba, não há uma conferência de imprensa diária que comece a horas? E explicar aos portugueses os porquês das medidas – para quando linguagem clara? Para quando o fim das contradições? – não devia ser também uma preocupação?

Ou só as aparências interessam?

Volto a citar Rousseau, bem a propósito um dos mais importantes pensadores da política e ensino dos tempos modernos:

A natureza nunca nos engana, somos sempre nós que nos enganamos.