É uma bênção1 viver em democracia. Mas mesmo, mesmo bom é viver num estado de direito. É triste, mas as democracias aproximam-se das tiranias na medida em que as suas leis2 ou não são justas3 ou não são cumpridas. As nossas leis podem ser as melhores do mundo. Mas se não forem obedecidas, seguidas por uns porque são boas, acatadas por outros porque as penas que acompanham a sua violação são proporcionais4 e de aplicação pouco incerta, a sua existência não impede o aparecimento de pequenas tiranias5 na vida social que infernizam a vida do cidadão seja na repartição pública, no mercado, na empresa ou até lá em casa. Infelizmente a democracia não garante a manutenção de um estado de direito, como os portugueses bem sabem.

A invasão brutal da Ucrânia chocou todas as amantes da paz6 e todos os homens de boa vontade. Na Europa, em Portugal e no resto da África, em todo o mundo e até no Japão. Pessoas para quem, até há pouco, o sr. Putin não aquecia nem arrefecia, passaram a nutrir uma aversão mortal à criatura.

É esse o caso do sr. Hino Mitsunobu 日野充信, um ancião de 72 anos, residente em Matsudo, cidade na província de Chiba no Japão. O sr. Hino ficou chocado com a brutalidade da invasão russa e com as desumanidades cometidas contra a população ucraniana amplamente noticiadas nos meios de comunicação. Mas, ao contrário da grande maioria das pessoas que, apesar de escandalizadas com o regime russo e as suas atrocidades, não fizeram nada para resistir ao seu despotismo e foram para a cama dormir descansadas, o sr. Hino decidiu combater a tirania neossoviética como melhor podia e sabia.

Como? Com wara 藁, palha de arroz, fez um boneco com figura humana, pôs-lhe uma cara do sr. Putin com o caracter kyō 凶 inscrito na testa e, no passado dia 19 de Maio pelas duas da tarde, espetou-o numa árvore. Espetar um boneco de wara, wara-ningyō 藁人形no idioma local, numa árvore é uma técnica de maldição praticada há séculos no Japão, de eficácia discutível, mas que a internet popularizou e o e-commerce universalizou: qualquer um pode hoje comprar todo o tipo de wara-ningyō no conforto de sua casa, através da net. O wara-ningyō é a personificação de uma pessoa a quem se quer mal, que se deseja que desapareça ou que morra. O caracter kyō significa “catástrofe” e “aflição” e é a invocação, pouco Cristã, da maldição que se invoca sobre a pessoa representada. O prego é espetado, por motivos que parecem não requer explicação elaborada, através do coração e/ou cabeça.

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O objeto do crime do sr. Hino

O sr. Hino, no entanto, cometeu um pequeno erro. Espetou o sr. Putin num shinboku 神木 do Santuário Xintoísta Mikazuki 三日月神社, em Matsudo 松戸市. Shinboku é uma árvore sagrada no Xintoísmo. Mais! É uma árvore que é divina, literalmente, um deus, e que como tal é tratada com todo o respeito religioso que os deuses deste mundo merecem. Assim, depois de uma aturada e minuciosa investigação policial para determinar a identidade do criminoso, no passado dia 15 de Junho o sr. Hino foi preso e formalmente acusado de ter praticado a malfeitoria.

E qual foi o seu crime? Ter expressado ódio contra outro ser humano? Não. Por lesa majestade contra um soberano estrangeiro? Também não. Por ter cometido um sacrilégio contra uma divindade que escandalizou a numerosa e fervorosa comunidade Xintoísta? Não, não foi esse o motivo invocado na sua prisão. Devido a queixa do pan local por ter ferido um ser vivo proto-senciente com dois pregos com uma profundidade estimada de 3 a 4 centímetros? Também não. Então porquê? Porque o shinboku, tal como o santuário e o terreno onde ambos se encontram, é propriedade de uma associação religiosa. Aqui o importante não é quem é o proprietário. O que é importante é que o shinboku é propriedade privada. E também importante é o facto do sr. Hino não ter obtido consentimento do proprietário para espetar os 2 pregos numa arvore que não é sua e que tem dono. Isto é, o sr. Hino foi preso por violação da propriedade privada.

Mas serão dois pequeninos buracos feitos em árvore alheia justificação razoável para a prisão de um ancião, para mais um freedom-fighter? Não será um exagero, um ultrapassar, pela direita, do bom-senso? Quem acha que a lei é para ser cumprida quando ela julga que deve ser cumprida, e que pode ser ignorada, quer através da invocação do princípio da futilidade ou de outra construção teórico-social da jurisprudência7 moderna, naqueles casos em que ela acha que pode não ser cumprida, dirá que sim. Mas quando a obrigação de cumprir a lei, e a licença para não a cumprir, se torna arbitrária e fica dependente da opinião e do sentimento volátil de umas quantas pessoas, mesmo que democraticamente eleitas ou nomeadas, a lei deixa de ser igual para todos e o estado de direito deixa de existir. Na terminologia clássica chama-se a esse estado de coisas despotismo ou tirania.

Assim, a aplicação cega da lei que levou o sr. Hino à prisão pode ter sido uma vitória para o sr. Putin, mas é prova que a justiça e o estado de direito ainda funcionam no Japão. E em Portugal? Será a propriedade de todas as pessoas protegida de igual modo, sem favoritismos nem clientelismos, sem desprezar minúcias nem reparar no cartão partidário de quem as comete e de quem as sofre?

U avtor não segve a graphya du nouo AcoRdo Ørtvgráphyco. Nein a do antygo. Escreue coumu qver & lhe apetece. #EncuantoNusDeixam

  1. Bênção: benefício recebido que é pago com ingratidão ou indiferença.
  2. Lei: prima afastada da Justiça com a qual se dá mal e frequentemente corta relações; instituição que sofre de ilusões de poder, nomeadamente de ser capaz de impor padrões de comportamento e sistemas de moralidade (ver, por exemplo Constituição da República portuguesa); não infrequentemente, a sua patologia torna-se extrema e leva-a a assumir as funções legitimamente exercidas apenas pela Misericórdia, pela Compaixão e pela Solidariedade; numa democracia é suposto ser o eleitor quem a gera, mas a virtude da senhora democracia levanta dúvidas legitimas sobre a verdadeira paternidade da Lei, embora não haja dúvida que é ele que a tem que aturar toda a vida.
  3. Justiça: personagem mitológica do hétero-patriarcado branco, desmitificada por acidente na A6 envolvendo personagem poderoso’n veloz e um reles cidadão, vagaroso e indefeso; mercadoria que se compra & vende nos tribunais; mercancia de qualidade não inspecionada pela ASAE, e quase sempre fora do prazo limite de consumo, que o estado vende a troco de impostos acrescidos de “taxas de justiça”; tipo de relação que o estado permite, mas não impõe, nas relações entre cidadãos mas que não autoriza nas relações deles com ele; sra. ceguinha; artista que só pratica legitimamente o seu mister se estiver vendada.

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  4. Proporcional: aquilo que mantem um rácio constante com outra quantidade, tal como o IVA sobre o pão; o seu oposto é infinito e recebe dois nomes consoante a sua natureza, progressividade, como no IRS, ou regressividade, como no código penal; 1 por 1, 100 por 100; correspondência em tamanho, quantidade ou gravidade; pena proporcional à gravidade do crime tal como estabelecido pela lei do talião: “olho por olho, dente por dente,…” (Ex 21, 24); atribui-se à falência do SNS a abolição do principio de proporcionalidade na nossa lei penal.
  5. Tirania: sistema político adotado pelos povos que preferem a praga do despotismo (vendido pelo BE) à pestilência da anarquia (proposta pela IL).
  6. Paz:período de equívocos e enganos entre dois de pancada; um dos sete horrores sociais segundo warxismo dialético, sendo os outros a prosperidade, o matrimónio, os bebés, a felicidade, a harmonia e a alegria.
  7. Jurisprudência: tipo de prudência que permite o contorno legal da Lei com toda a segurança ou, para praticantes mais avançados, o ir contra a Lei sem se magoar; no entanto, a jurisprudência não consegue evitar uma noda negra no corpo a quem vá contra uma mesa ou tropece numa pedra nem, na opinião do sr. Sócrates, na alma a quem choca com a Justiça ou com a Verdade (ver Górgias).