A reforma do Estado é um assunto recorrente no espaço público. Na sequência do Congresso do PSD voltámos a ouvir falar de reformas de Estado e de acordos ou pactos de regime. A este respeito, retomo alguns excertos de um escrito de 2015 publicado no Observador a propósito do “partido-estado e da reforma do estado”. Farei depois algumas reflexões a propósito da nossa particular condição, em especial quando associamos estado-exíguo e reformas do estado e numa conjuntura em que o secular “conceito estratégico nacional” parece cada vez mais redundante.

I. O partido-estado e a reforma do Estado

“O partido-estado pode, portanto, ser definido como o conglomerado ou a constelação de interesses e poderes que vivem e sobrevivem acoplados aos diversos aparelhos do poder do Estado e que, para o efeito, construíram uma rede de interdependências de tal ordem que estão, para o melhor e o pior, prisioneiros desse mesmo Estado dos interesses. Num outro registo, podemos definir o partido-estado, em sentido amplo, como o conjunto de agentes prestadores e beneficiários, diretos e indiretos, permanentes e circunstanciais, que vivem dentro e à volta do Estado e que, por via do orçamento e através dele, estruturam uma rede arterial e capilar de tal modo densa e fina que vivem permanentemente o “dilema do prisioneiro”.

O partido-estado é o partido dos interesses permanentes, mesmo que seja um partido inorgânico, pastoso, conglomerado e difuso. No plano formal é um partido virtual, um partido nuvem, mas no plano material é um partido clientelar, onde reinam e se experimentam, recorrentemente, o calculismo e a tática político-partidárias. O partido-estado é, por isso, um campo de treino por excelência, por onde circulam e se formam as chamadas elites partidárias e se faz a chamada reciclagem dos dirigentes partidários. Este campo de treino é imenso, pois o partido-estado tem ramificações fora do aparelho de Estado, uma vez que se estende ao chamado sector empresarial do Estado, num vai e vem permanente entre o que fica dentro e o que fica fora do chamado perímetro orçamental.

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O partido-estado, apesar das ameaças exteriores, celebra a ideologia dos direitos adquiridos, não tem a ideologia como linha programática, o seu conservadorismo fundamental cola-se e confunde-se com a inércia do sistema político e, nessa medida, tolera apenas aqueles ajustamentos marginais que reforçam a estabilidade e a segurança do sistema do partido-estado. O partido-estado, no sistema de trocas em que está envolvido, usa de toda a cumplicidade, duplicidade e ambiguidade que o regime lhe proporciona. Não gosta de pactos e acordos de regime ou de outros tipos de compromisso de médio e longo prazo que lhe ameacem a condição e o estatuto, com o receio de que esses atos venham a clarificar a situação nebulosa e difusa em que se move. Do mesmo modo, o partido-estado não gosta, também, de intrusos exteriores que perturbem a sua extensa zona de conforto”.

II. A circunstância do estado-exíguo, os fatores críticos.

Tomo de empréstimo o título do livro do Prof. Adriano Moreira “A circunstância do Estado-exíguo” (Editora Diário de Bordo, 2011) para fazer algumas reflexões a propósito, em especial quando associamos estado-exíguo e reformas do estado e numa conjuntura em que o secular “conceito estratégico nacional” parece cada vez mais redundante.

A minha tese é a de que a nossa condição de estado-exíguo está muito associada ao rotativismo da 3ª república e à omnipresença do partido-estado, tal como ele se declarou nas últimas quatro décadas. A “geringonça” governativa atual apenas introduziu uma inovação política de transição, mas, como é evidente, não alterou o essencial da organização política do Estado-administração que, à imagem do tacticismo político-partidário, continua a ter um processo de tomada de decisão essencialmente incremental, processual e procedimental. Acresce que esta “circunstância interna do estado-exíguo” resulta agravada por uma circunstância externa, digamos, extra-territorial, que nos escapa em boa medida e que põe em causa a nossa soberania doméstica e territorial. Refiro-me a alguns riscos globais que um pequeno país não controla e que condicionam profundamente a nossa margem de discricionariedade.

Assim sendo, a minha pergunta de partida é simples: está um estado-exíguo, condicionado por uma dupla circunstância, em condições de realizar, com êxito, as designadas “reformas de estado” que no último congresso do PSD voltaram a ser reclamadas? Existem, com efeito, alguns fatores críticos que até 2050 farão sentir ao estado-nação português a sua peculiar exiguidade. E já não falo dos “cisnes negros” que poderão eclodir a qualquer momento no sistema de relações internacionais, provenientes, por exemplo, do Norte de Africa, do Médio Oriente, do Leste Europeu ou, mesmo, das relações peninsulares. Vejamos alguns desses fatores críticos.

1. O declínio demográfico

Basta, para tanto, declinar o índice de fecundidade com o índice de envelhecimento e teremos o primeiro traço de exiguidade que nos fará passar de 3,1 para 1,4 entre 2016 e 2050 no que diz respeito ao número de pessoas em idade ativa por cada idoso. Primeiras reformas em pano de fundo: que política de natalidade, que políticas para a terceira idade, que política para a idade de reforma, que programas de envelhecimento ativo, que políticas de saúde pública? Mas, também, que políticas de estabilização migratória entre o sul e o norte da Europa para evitar o suicídio demográfico dos países do Sul da Europa?

2. As correntes migratórias

As correntes migratórias serão de vária ordem: os trabalhadores migrantes por razões de ordem económica, os refugiados de guerra, os refugiados ambientais devido às secas severas e à fome, os asilados por razões políticas, os fluxos temporários por razões de estudo, trabalho e visitação e, finalmente, o regresso das diásporas por algumas das razões antes referidas. Pensemos no caso português, nas várias diásporas espalhadas pelo mundo e na elevada sensibilidade e risco em que algumas se encontram neste preciso momento. Neste contexto, as políticas migratórias em sentido amplo, no interior da União Europeia e em relação a países terceiros, serão uma prioridade essencial a muito curto prazo e, também, para a década 2020-2030. Acresce que o envelhecimento da população europeia pode acelerar ainda mais o declínio demográfico dos países do sul da Europa cujos trabalhadores serão seduzidos para emigrar para o norte da Europa em busca de profissões e salários melhor remunerados.

3. A revolução digital, o emprego e o mundo do trabalho

No mesmo sentido, as tecnologias da 4ª revolução industrial irão alterar profundamente a estrutura do emprego e o mundo do trabalho tal como os conhecemos hoje. Um dos fatores contingentes nesta área é a assincronia nas relações entre as diversas atividades económicas, isto é, os hiatos que se produzirão na reconfiguração do emprego e dos novos mercados de trabalho. Dito de outro modo, se não tomarmos medidas cautelares que preparem e previnam a transição digital, o desemprego fricional crescerá rapidamente, assistiremos a um abaixamento da estrutura e do nível dos rendimentos salariais e haverá uma décalage apreciável na reação do mercado de trabalho à nova situação. Neste contexto, as políticas ativas de emprego, a empregabilidade e a formação ao longo da vida, a proteção social num mercado de trabalho intermitente e as novas formas de financiamento da segurança social serão as políticas fundamentais para a década de 2020-2030.

4. A turistificação crescente do território

Uma outra vaga de fundo, em muitos sentidos convergente com as tendências anteriores, diz respeito ao ciclo turístico atual. De facto, a turistificação crescente do território, sendo uma hipótese em aberto, pode arrastar-nos para uma situação de “país low cost generalizado”, local de destino de uma boa parte da população sénior da Europa e onde uma população simpática e acolhedora está cada vez mais “gentrificada” e empobrecida, vivendo e sobrevivendo à custa de diversas fontes de rendimento complementar que vão do salário mínimo, aos biscates e ao alojamento local. Também aqui é necessário tomar medidas cautelares e prevenir que esta eventualidade se torne uma realidade inelutável e independente da nossa vontade. O país não pode adormecer melancolicamente ao sol, ao sal e ao sul da turistificação total.

5. As alterações climáticas e o abandono do território

As alterações climáticas e em especial os eventos severos e extremos de seca podem trazer-nos algumas surpresas muito desagradáveis se teimarmos em retardar determinados investimentos de mitigação e adaptação, em particular no que diz respeito à gestão de recursos hídricos. É preciso evitar a todo o custo que o abastecimento de água às populações possa conflituar com a agricultura e com o fluxo turístico, pois esse conflito recorrente é o primeiro passo para um abandono progressivo do território e, por maioria de razão, se forem desencadeadas as guerras da água com Espanha.

6.  O empobrecimento geral e a ascensão de um movimento nacionalista

Assistimos em toda a Europa a uma erosão dos valores democráticos e à correlativa ascensão de movimentos nacionalistas à boleia dessa desafeição política e emocional. Em Portugal, poderemos estar muito perto de sabermos se um empobrecimento crescente da população nos conduzirá, tarde ou cedo, a um movimento nacionalista como, de resto, já acontece em toda a Europa. Se não corrigirmos rapidamente as desigualdades económicas e sociais e se algum imponderável grave irromper na cena europeia, mediterrânica ou mesmo peninsular, então, sem um suplemento de futuro que esteja assegurado tudo pode acontecer.

III. A equação orçamental do estado-exíguo

As duas circunstâncias, interna e externa, atrás referidas fazem ruir qualquer tentativa de equação orçamental que procure responder aos problemas estruturais da sociedade portuguesa, a começar pela organização política do Estado-administração. O partido-estado é um transpartido e um porto de abrigo, que acolhe cerca de 5 a 6 milhões de portugueses que, direta ou indiretamente, dependem das suas remunerações, benefícios, prestações e contratos. Este partido-estado atravessa transversalmente não apenas o espectro político-partidário português, mas, também, quase toda a sociedade portuguesa. O partido-estado é a vaca sagrada do regime, o seu derradeiro tabu. Representa quase 50% da riqueza anual produzida num país que “se recusa a crescer” e que em 2017 cometeu a “extraordinária proeza” de ter crescido 2,7%.

Esta vaca sagrada do regime democrático da 3ª república, a república do 25 de Abril de 1974, foi posta em risco por causa de um intruso externo chamado Troika, credor oficial de 78 MM de euros, cerca de 40% da dívida pública portuguesa. O programa de assistência económica e financeira imposto pela Troika desferiu um golpe profundo no partido-estado, aumentou a nossa exiguidade e, sobretudo, ameaçou a sua estabilidade, segurança e previsibilidade. Acresce que os próximos passos da união económica e monetária (UEM), sobretudo a união orçamental, também não garantem as condições que conduziram à formação da zona de conforto do partido-estado. Com efeito, a equação orçamental que até hoje alimentou o partido-estado está definitivamente posta em causa pelo “algoritmo macroeconómico europeu” tal como pode ser deduzido do tratado orçamental, do pacto de estabilidade, do semestre europeu e outra legislação europeia nesta matéria (Packs). Isto é, a nossa eterna equação da dívida, pública e privada, terá de ser substituída e dar lugar à equação da poupança, do investimento e da exportação, de tal modo que o crescimento do PIB aumente a receita fiscal e reduza o encargo real e nominal de dívida pública e privada.

Estão, pois, em causa algumas práticas pouco recomendáveis do partido-estado como aquela que tolera algumas “maldades orçamentais” na primeira metade do ciclo-eleitoral, mas que exige compensação dessas maldades na segunda metade do ciclo eleitoral ou, ainda, o lema do partido-estado de que “a dívida não é para pagar, é para trocar e para rolar”. Eis o “dilema do prisioneiro” em plena laboração: para se libertarem da equação da dívida os partidos correm o risco de perder uma parte importante do partido-estado necessária à sua reeleição, por outro lado, para manterem a influência sobre o partido-estado vão ter muitas dificuldades em se libertarem da equação da dívida.

IV. A “dupla circunstância” do estado exíguo e as reformas do Estado

Perante esta “dupla circunstância” (e não obstante os efeitos líquidos positivos da turistificação do território), o partido-estado e o estado-exíguo, tal como os conhecemos ainda hoje, não podem assegurar ao sistema de partidos e à sociedade portuguesa a reprodução das suas condições de estabilidade, segurança e previsibilidade que sempre os caracterizaram nos últimos quarenta anos. Na nossa história recente, o partido-estado sofreu dois abalos sísmicos de intensidade elevada, em 1978-79 e em 1983-85. O problema foi ultrapassado com a assinatura de duas “cartas de intenções” com o FMI e, no plano interno, por dois cortes profundos dos salários reais que fizeram o ajustamento económico sem cortes dos salários nominais. A emissão de moeda própria, a ilusão monetária e a inflação (acima dos 20%) tornaram o exercício de ajustamento aparentemente mais suportável.

Em 2018, sem moeda própria e com reduzida autonomia orçamental, com taxas de inflação muito baixas, taxas de poupança interna quase nulas, níveis muito elevados de dívida pública e privada, baixa capitalização empresarial, sistema bancário em situação precária e em mãos externas e com limites orçamentais para cumprir impreterivelmente no quadro do Pacto de Estabilidade e Crescimento e do Tratado Orçamental, estamos numa situação económica, orçamental e financeira sem escapatória.

O partido-estado (os partidos do regime) e a sociedade portuguesa devem olhar-se olhos nos olhos e decidir o que fazer em relação à organização política do estado, à sua organização administrativa, à organização do setor empresarial do estado, à estrutura da despesa fiscal e respetivos benefícios empresariais, à próxima geração de investimentos públicos de rede e à estrutura da política de rendimentos onde se inclui a fiscalidade direta e a segurança social. No conjunto, uma cura de eficiência e emagrecimento correspondente a uma redução de 10 pontos percentuais no peso da despesa pública total no PIB até 2030, mas em linha com a receita fiscal que é possível arrecadar numa conjuntura positiva de uma década de crescimento moderado do produto em redor de 2% a 3% em termos reais, o que está perfeitamente ao nosso alcance.

Nota Final

Se estas expetativas moderadamente otimistas não se confirmarem ficaremos nas malhas dos mercados internacionais e da ajuda europeia em regime de “liberdade condicional” e sob condições estritas. Se assim acontecer, o estado-exíguo não estará disponível para grandes reformas de Estado. O mesmo se diga em relação às próximas fases da integração europeia, correspondentes à segunda fase da união económica e monetária e ao lançamento das primeiras pedras da união política europeia (UPE), por mais europeu que seja o discurso do primeiro-ministro em matéria de impostos europeus e novos recursos próprios.

É esta imprevisibilidade consubstancial que exige uma tomada de posição firme, uma espécie de compromisso histórico onde cabem, em princípio, todos os partidos do regime: um acordo de regime interpartidário para duas legislaturas (2019-2023-2027), uma revisão constitucional que abra caminho à reforma do Estado político-administrativo e a um eventual ajustamento no quadro da UEM II e da UPE e, por último, mas em simultâneo, um programa de desenvolvimento económico e social para duas legislaturas no âmbito do próximo período de programação de fundos europeus e onde a política fiscal e a política de segurança social sejam as “grandes reformas” da década de 2020.

No final, a reforma do Estado e, correlativamente, a reforma da estrutura da despesa pública estariam reportadas às grandes funções do Estado, a saber:

  • O Estado soberano: rever a estrutura de poderes soberanos, a sua representatividade eleitoral e as missões de soberania,
  • O Estado social: rever os regimes de proteção social e a sustentabilidade da segurança social no quadro de uma política de rendimentos na sua aceção mais ampla,
  • O Estado fiscal: rever a estrutura dos benefícios fiscais e a distribuição da carga fiscal tendo em vista o crescimento económico e o combate às desigualdades,
  • O Estado empresarial: rever o programa de parcerias público-privadas (PPP) e os limites do “perímetro empresarial” do Estado,
  • O Estado regulatório: rever a legislação e o modelo operatório da administração autónoma do Estado tendo em vista promover a transformação e a transição digitais,
  • O Estado administrativo: rever a descentralização de competências, promover o federalismo autárquico de 2º grau e reformar o Estado Local e Regional.

Estas são as grandes tarefas para a década 2020-2030 no quadro do próximo período de programação dos fundos europeus. Oxalá o crescimento económico ajude, não obstante o paradoxo verosímil, e bem português, de que um crescimento mais elevado possa abrandar ou mesmo adiar as reformas do Estado. O “partido-estado”, esse, não vai desistir assim tão facilmente.

Universidade do Algarve