Este ano fui enganado. Não que não tenha sido enganado em anos anteriores. E isto também não quer dizer que apenas seja enganado numa proporção de uma vez por ano. O engano é um fenómeno tão constante que talvez não devêssemos contar as vezes em que fomos enganados, mas as vezes em que não fomos (e até nisso podemos estar enganados, quando julgamos que enganados não fomos). Mas confirmo: este ano fui enganado.

Fui enganado por outra pessoa. Fez-me pensar que era o que não era e isso teve consequências. Quando somos enganados assim, olhamos para trás e vemos que, afinal de contas, o passado não corresponde ao que pensávamos acerca dele. O engano significa que não aconteceu o que aconteceu e a nossa bússola cronológica fica toda estragada. De repente, ao sermos enganados, o mundo mudou ao ponto que até o que era garantido ter acontecido, lá no passado, pode não ter acontecido mesmo. O engano é um modo do nosso passado ser roubado. Geralmente temos o passado como aquela realidade que não pode mudar, mas o engano até aí chega com os seus estragos. O engano não respeita o tempo sequer.

Nesse sentido, o engano muda o mais profundo que a vida tem que é a vida que já aconteceu. Creio que estamos mais dispostos a mudar as nossas ideias acerca do futuro do que as nossas ideias acerca do passado. Afinal, o futuro ainda está por acontecer e parece mais flexível. Mas agora ter de mudar as nossas ideias acerca do passado é doloroso porque implica mudar aquilo que, por já ter acontecido, se esperava resistir à mudança. Eis o calibre de um engano: até o que estava quietinho no passado, como facto dado e adquirido, pode ser mexido e tirado de nós. O engano é terrível.

Um engano assim não tem indemnização possível. O preço dos estragos provocados pelo engano não se paga. A única possibilidade diante do engano é a atitude que não olha para os prejuízos do passado mas para as possibilidades do futuro—a única possibilidade diante do engano é o perdão. O perdão consegue a envergadura de tratar do engano porque desiste de mudar o que o engano miseravelmente mudou: o passado. Um perdão com os olhos no passado não é perdão.

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Uma figura bíblica usada para descrever o perdão é a de que Deus lança o mal que nós fizemos no fundo do mar (Miquéias 7:19). É uma imagem incrível porque, se ainda hoje vemos tão mal debaixo de água, com todo o apetrechamento técnico que adquirimos, imaginem há dois mil e tal anos, quando esta expressão foi usada nas Escrituras. O perdão é Deus colocar os enganos que desferimos nos outros num lugar onde não há olhos que lá cheguem para ver onde ficaram. O engano some quando Deus perdoa.

Mas para o engano desaparecer através do perdão é preciso a pessoa mostrar a atitude que desencadeia Deus a mandar o nosso erro para o fundo do mar: o arrependimento. O arrependido não pode desejar que os outros esqueçam que por ele foram enganados, porque isso só mostra que a pessoa não está arrependida. Aqui encontramos um paradoxo precioso no assunto do engano e do esquecimento que o perdão pressupõe: só quem sabe que não é possível haver esquecimento pelo mal que fez está pronto para se livrar dele. Todos os que exigem o esquecimento do seu mal enganam-se no seu alegado arrependimento. Também por isso, uma das pessoas mais arrependidas da Bíblia, David, implorava a Deus no auge do seu arrependimento: “apaga as minhas transgressões, segundo a multidão das tuas misericórdias. (…) Porque eu conheço as minhas transgressões, e o meu pecado está sempre diante de mim” (Salmo 51). Pedimos pelo milagre de Deus fazer desaparecer o que está sempre connosco—o perdão também é viver esta operação estranha.

É sempre mais fácil falar do lugar de quem vê os outros fazerem as coisas más e nós as boas. Este texto começou assim mesmo: fui enganado por outra pessoa. Mas será mais interessante terminar assumindo que se podia ter dado o contrário. Poderia ter sido eu a enganar os outros. Por isso, quero fechar estas linhas a colocar-me nesse lugar mais impopular, de quem não se especializa nos erros dos outros mas nos seus.

O perdão acontece assim: de um lado, nós, os que enganámos, não esquecemos o nosso mal e das suas consequências; do outro, Deus e aqueles que nos perdoam, decidem esquecer. O perdão é decidir fazer aquilo que não se pode garantir, de tão carente que se fica de um poder que vá além das capacidades dos envolvidos. Perdoar é a escola do impossível e é por isso que, mesmo quando o nosso passado foi estragado, o nosso futuro pode ter arranjo.