É verdade que, quando o imaginamos, o futuro tão depressa parece longe demais como varia entre ser uma realidade virtual ou um simulador de voo. Vendo bem, ensaiamos o futuro sempre que o imaginamos. E projectámo-nos nele da forma como vivemos o dia a dia. Daí que uns sofram por antecipação. E outros se limitem a assumir o futuro como um lugar melhor. E, depois, há sempre “os outros” que, não sendo negacionistas em relação ao futuro, acabam por alimentar um espécie de conspiração de silêncio para com ele. Enquanto o futuro não chegar ele não existe; será mais ou menos assim. É só uma estimativa. O que num mundo que privilegia o número, por mais que o manipule a torto e a direito, dá ao futuro o estatuto de suposição. Porque, para quem decide, o futuro é, vezes demais, imaginação. E isso, em vez de ser coisa séria, é “descer” ao nível das crianças. É quase uma brincadeira. Não é para levar a sério.

Deve ser por isso que, para quem o considere uma suposição, o futuro do planeta se limite a alguns degelos. “Sem importância”, quando se calcula o impacto que isso tem no futuro dos nossos filhos. Ou que as desigualdades sociais que se agravam seja uma preocupação pautada por uma deriva política que se interpôs entre nós e o futuro. Deve, aliás, ser também por isso que a natalidade não seja uma preocupação de Estado. Como se discutir-se o futuro da natalidade parecesse dar-lhe um estatuto semelhante à ideia natalista do governo chinês sobre a liberdade dos cidadãos diante da fecundidade. O que não tem – e não mesmo! – graça nenhuma. Todavia, à medida que o tempo passa, fica claro que a este país não é para bebés. E que a pandemia acentuou esta ideia, de forma assustadora.

Nos primeiros dois meses de 2021, registaram-se os valores mais baixos da taxa de natalidade alguma vez registados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE)! Durante a pandemia nasceram muito menos bebés e morreram muito mais pessoas. 2020 é o ano em que o saldo negativo entre nados-vivos e mortos é o maior desde 1918. Nos primeiros dois meses de 2021, registaram-se os valores mais baixos da taxa de natalidade alguma vez registados pelo INE. Durante a pandemia, o número de registos baixou. E o número de testes do pezinho também. Em 2021, o adiamento da decisão de ter um filho estendeu-se, também, aos imigrantes que residem em Portugal. Em 2021, a taxa de amamentação na primeira hora baixou. O números pílulas vendidas  baixou. E a venda de pílula do dia seguinte baixou. A sexualidade e a pandemia, tudo o indica, deram-se mal. Em contrapartida, os actos de criopreservação de ovócitos subiram. A pandemia acentuou muitas mudanças. Mas avivou mais, ainda, a quebra significativa da natalidade que, desde há anos, se vem a dar. A guerra e a crise económica que decorra dela pode acentuá-la; muito. E a conspiração do silêncio acerca disto tudo parece não ter fim à vista.

O preço dum filho por dia faz dele, cada vez mais, um bem só ao acesso dum casal de classe média/alta. O preço da habitação nas cidades é proibitivo e não comporta assoalhadas a pensar em bebés. O preço da educação empurra os casais, mesmo que desejem mais filhos, para uma “política de filho único”. E a maternidade, por mais não devesse, leva a que as mulheres passem menos tempo no trabalho, trabalhem mais em casa, tenham menos tempo para si, para o lazer e para os seus cuidados pessoais. Para além disso lhes trazer um gap de 7% no salário por cada filho que geram, com tendência a acentuar-se com a pandemia. Estranha-se que nada disto se pondere quando se fala de natalidade. Na verdade, faltam políticas públicas dedicadas à natalidade, à família e à criança. Faltam mais condições tendentes ao nascimento do segundo filho e às famílias numerosas. Falta mais paridade nas leis do trabalho, nomeadamente no que diz respeito ao trabalho a partir de casa e do trabalho em part-time.  E é indispensável que haja menos desigualdades de género e mais paridade parental, sobretudo quando se consideram os apoios à família. Falta mais reconhecimento acerca do peso dos custos, directos e indirectos, da educação no orçamento das famílias. Mais políticas no âmbito do poder local, no sentido de se complementarem as tarefas de apoio às crianças que, dantes, eram desempenhadas pelos avós e pelos pais. E um outro olhar, articulado e sério, sobre os fluxos migratórios.

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Mas saltemos, agora, para uma visão mais macro sobre isto tudo. Em 8000 A. C. havia 5 milhões de pessoas em todo o mundo. Em 1800, mil milhões. Em 2017, 7,6 mil milhões. Em 2100 as perspectivas apontam para que sejamos 11 mil milhões. Em 2100, a esperança de vida terá aumentado 11 anos. Acrescentando mil milhões de idosos ao número total, actualmente, existente. Numa leitura-macro, a taxa de natalidade, a nível global tenderá a manter-se estável nos próximos anos. Se bem que, considerando países desenvolvidos e países em vias de desenvolvimento, haja uma profunda discrepância das respectivas taxas de natalidade. Duma forma mais abrupta, será legítimo que se considere que a pobreza “produz” mais bebés. O que, em termos sociais, deveria constituir um motivo de alarme. Pelas desigualdades que isso gera, desde o primeiro momento, em relação a milhões de crianças em todo o mundo, que a escola muito dificilmente conseguirá esbater e corrigir. Logo, os apoios à natalidade têm de ter continuidade numa política de família de forma a que se esbatam desigualdades que, ao deixarem-se acentuar, poderão ficar fora de controle.

Em 1965, havia 5 nascimentos por mulher. Em 2017, 2,5. Existirão, actualmente, 2 mil milhões de crianças, dos 0 aos 15 anos em todo o mundo. Em 2100, a ONU estima que haverá 2 mil milhões de crianças. Ou seja, a estabilidade dos números de crianças sugere que, por um lado, não haverá alarmes globais a nível do crescimento da população e da sua relação com os recursos disponíveis no planeta. Mas, também, que as desigualdades geográficas e sociais das taxas de natalidade, acentuadas ao longo dos próximos anos, tenderão a ser o factor de preocupação a nível global. Em termos de discrepâncias no acesso à educação. De conflitualidade. De justiça social. E de fluxos migratórios!

Por outro lado, segundo dados do INE, a população portuguesa pode diminuir de 10,5 milhões de pessoas, em 2012, para 8,6 milhões de pessoas, em 2060. Para além do declínio populacional, esperam-se alterações da estrutura etária da população, resultando num continuado e forte envelhecimento demográfico. Assim, entre 2012 e 2060, o índice de envelhecimento aumentará de 131 para 307 idosos por cada 100 jovens, no cenário central. Nesse mesmo período, o índice de sustentabilidade potencial passa de 340 para 149 pessoas em idade ativa por cada 100 idosos. Se os portugueses não inverterem as taxas de natalidade actualmente verificadas e não regressarem a um saldo migratório positivo, Portugal poderá perder 4 milhões de habitantes em cerca de 40 anos. Isto é, uma política da natalidade, implementada hoje – que terá sempre resultados efectivos a uma geração de distância – torna-se uma urgência, sem a qual uma quebra demográfica poderá ter consequências incalculáveis a médio/longo prazo. Por outras palavras, se nos separam 40 anos de números tão alarmantes, e se poderemos esperar que os jovens que nasçam hoje tenham autonomia financeira plena aos 30 anos, esperam-nos 10 anos para que se implementem transformações significativas a nível da natalidade. Por mais que a conspiração do silêncio seja de assustar!

Em função de tudo isto, a natalidade exige uma abordagem atenta e corajosa. Considerando as implicações que decorrem daqui. E do impacto que a taxa de natalidade terá a nível social, económico e político nos próximos 40 anos. Até porque, como recordam alguns autores, a cada período de três a quatro séculos, quando se esgota uma civilização, há “misteriosamente” uma pandemia. Foi assim na decadência romana com a antonina (165-180). No fim da Idade Média (1343-1353), com a peste negra. No fim da reforma protestante (1577-1579), com a febre tifóide. E com a actual pandemia. Que nos pode indiciar que a covid 19 poderá trazer, também, consigo mudanças profundas a nível civilizacional que poderão marcar alterações estruturais em muitas coordenadas que vinham desde o Renascimento e desde o Iluminismo. Se acresceremos a tudo isso a perspectiva de novas pandemias, nomeadamente em consequência das alterações climáticas, o impacto que elas e outras mudanças sociais poderão ter na natalidade poderão trazer consigo inúmeras  consequências familiares e económicas. Mas, também, políticas e civilizacionais.

Chegados aqui, a natalidade parece estar abrangida pelos mesmos défices de atenção que a falta de médicos ou a falta de professores. Até o futuro não chegar ele não existe. Será mais ou menos assim. O que acaba por ser inquietante. E irresponsável! Para quem decide, o futuro é, vezes demais, imaginação. E isso, em vez de ser coisa séria, é “descer” ao nível das crianças. É quase uma brincadeira. Não é para levar a sério. E enquanto for assim – assustadora e gravemente! – este país não é para bebés.