A concentração de casos de Covid-19 em lares e o elevado número de mortos não é uma especificidade portuguesa. Em Inglaterra, estima-se que mais de metade dos mortos por Covid-19 seja em residências para os idosos como nos relata o jornal Guardian. Do mesmo modo, logo em Maio, o New York Times nos informava que nos EUA mais de um terço dos mortos estava nesses lares. Os casos de Reguengos, e agora de Mora, não nos devem surpreender pelas estatísticas de infetados e mortos. Antes, pelas condições em que estes idosos estariam nesses lares. A confirmarem-se as alegações da auditoria da Ordem dos Médicos, desidratação dos idosos, falhas sérias na medicamentação, etc. o primeiro responsável só pode ser a Instituição que providencia os serviços – a Fundação – e o segundo quem tem a responsabilidade de a financiar, apoiar e fiscalizar a prestação desse serviço- o Estado. O apuramento de responsabilidades, sendo relevante, não é o essencial neste debate. Importa aproveitarmos este momento para se discutir o modelo de apoio aos idosos na velhice, e o papel dos cinco atores essenciais: as famílias, a administração central, as autarquias locais, as IPSS (terceiro setor) e as entidades privadas com fins lucrativos.

Quando existe um problema desta natureza, em vez de se procurarem as causas, há sempre quem esteja pronto a atirar a primeira pedra. Porque analisar as causas geralmente leva à conclusão que há responsabilidades partilhadas, nomeadamente de quem atira as pedras.

Desta vez foi o líder do CDS/PP que qualificou de “crime humanitário” e de “decadência moral do Estado” o caso de Reguengos pedindo a demissão da ministra da Segurança Social. Esta atitude tem dois problemas. Primeiro, mudar ministros não resolve problemas nem altera necessariamente as políticas para melhor. Segundo, denota falta de memória. Se o Estado tem problemas, e tem, isso deve-se a quem tem dominado politicamente o aparelho de Estado (PS, PSD e CDS).

Desfiando o fio da história ao contrário, relembre-se o Programa de Emergência Social (PES) elaborado no período da troika (em 2012), num governo PSD/CDS, com um ministro do CDS a tutelar a área. Esse programa estabelecia um objetivo de aumentar em 10.000 a oferta de lugares residenciais para idosos. Como é possível aumentar a oferta num curto espaço de tempo, num país sob resgate financeiro, sem condições financeiras, com uma procura sem resposta adequada, e em que a esmagadora maioria da oferta é protagonizada por IPSS? Só há teoricamente três possibilidades. Ou se diminui a procura de lares (e.g. com reforço de apoio domiciliário), ou se aumenta a rede de estabelecimentos, ou se aumenta a oferta na rede existente. A opção então tomada (Portaria 67/2012) foi esta última, “boa” para o Estado que poupa recursos, boa para as IPSS, que maximizam receitas, mas má para os utentes, com a diminuição na qualidade do serviço. Acabou-se com a distinção entre os tradicionais lares de idosos (com capacidade máxima de 40, excepcionalmente 60 utentes) e as entidades residenciais (que poderiam ir a 120), ficando a capacidade única para todas as entidades de 120. Criou-se a possibilidade de quartos triplos (onde apenas existiam individuais e duplos), diminuiu-se o número mínimo de quartos individuais de 25% para 20%. Mas sobretudo, esse aumento da capacidade e da densidade das entidades residenciais para pessoas idosas não terá sido acompanhado pelo necessário reforço de recursos humanos (pessoal auxiliar, enfermagem, etc.). Não admira que a maioria dos lares do Alentejo, agora vistoriados, não tenha condições de cumprir as regras de distanciamento e de contratar enfermeiros.

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Aquilo que falta nesta área é, antes do mais, informação regular e atualizada. O que se está a pedir agora, por causa do Covid-19 – número de residentes, trabalhadores (médicos, enfermeiros, e outros profissionais), etc. – deveria ser uma informação que a segurança social deveria recolher e tornar pública num portal para se poder avaliar quantitativamente o que se passa nestas estruturas residenciais.

Para além de indicadores quantitativos, que já dizem alguma coisa, precisamos de indicadores qualitativos. Qual não foi a minha surpresa ao encontrar bons documentos oficiais que se pecam por alguma coisa é por terem indicadores a mais. Trata-se, por exemplo, do “questionário de avaliação da satisfação: lar residencial”, um questionário que a ser preenchido levaria a um conhecimento aprofundado dos níveis de satisfação ou insatisfação de “clientes” (idosos) de “colaboradores” e de “parceiros”. As primeiras três perguntas aos utilizadores são: as instalações (1) são limpas e arrumadas? (2) facilitam a minha deslocação?, (3) são fáceis de utilizar? ” É também o caso do documento “Modelo de Avaliação da Qualidade: estrutura residencial para idosos” assinado por Pedro Marques quando era secretário de Estado da Segurança Social nos governos Sócrates. As preocupações com a análise da qualidade existiram, mas desconhece-se essa avaliação. O PS parece não ter dado continuidade a esta análise da qualidade dos equipamentos residenciais para idosos.

Não é possível desenhar políticas públicas em relação a um problema que é complexo e que se vai agudizar nos próximos anos, resultante do envelhecimento da população, sem informação adequada e uma estratégia. Defini-la, exige que se discutida e se dê resposta a várias questões. Vamos manter o modelo que tem vigorado deste o tempo do Estado Novo (apesar de melhorado substancialmente em termos de financiamento), em que a oferta residencial para idosos é feita sobretudo por entidades do terceiro setor? Pretende-se apostar mais em aumentar a oferta da rede de lares, ou no apoio domiciliário, como fazem atualmente os países nórdicos? Que papel para as entidades privadas? Como reforçar o papel fiscalizador, mas também de mentor e formador (stewardship) por parte do Estado? O que deve permanecer na administração central e o que deve ser descentralizado? Que articulação deve ser feita entre a Saúde e a Segurança Social nas políticas de apoio aos idosos?

Portugal é dos países com maior esperança de vida à nascença da União Europeia, mas não com mais anos de qualidade de vida. Que estas mortes nos lares por Covid-19 sirvam para alertar que temos de repensar e melhorar a forma como tratamos os nossos idosos.