Alexis de Tocqueville (1805-1859) é homenageado hoje, dia 16 de fevereiro, no nosso país, através da realização uma conferência anual com o seu nome, pelo Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica. Mas homenagear ou celebrar Tocqueville é também refletir sobre a eterna questão da igualdade.

Com efeito, Alexis de Tocqueville, abria o seu clássico, De la Démocratie en Amerique, começado a publicar em 1835, com as seguintes palavras: “Entre todas as novidades que me chamaram a atenção durante a minha estada nos estados Unidos, nenhuma me impressionou tanto como a igualdade de condições”.

Tocqueville retratava um jovem país, tornado independente em 1776, com uma Declaração de Direitos, onde se começa por dizer: “…Consideramos estas verdades evidentes por si mesmas: todos os homens são criados iguais, o seu criador dotou-os de certos direitos inalienáveis; entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade”. Declaração que viria posteriormente a inspirar a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão aprovada 1789, no início da revolução francesa.

Ora, para o grande pensador francês, que tão bem estudou os Estados Unidos, quer como sociedade quer como sistema político, a nova era democrática confundia-se com a igualdade e esta viveria em constante tensão com a liberdade.

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É assim, a partir do princípio cristão da igualdade dos homens perante Deus, a que se segue a igualdade dos homens perante lei que chegamos, após a segunda guerra mundial, ao princípio da igual dignidade da pessoa humana, consagrado pela Constituição alemã de 1949 e plasmado hoje na nossa Constituição de 1976.

O tema passou, desde então, por muitas metamorfoses, algumas com terríveis consequências, como o nazismo ou comunismo totalitário e todas as outras utopias igualitárias que a história nos transporta até ao presente.

Mas o tema não deixa de ser atual, como se pode ver pelo enorme alarido em volta do livro do economista francês Thomas Piketty, O Capital no Século XXI ou, exemplo recente, o último número da influente revista Foreign Affaires (jan/fev 2016), cujo matéria central e de capa é, precisamente, Inequality.

Nesta última publicação, escreve Pierre Rosanvalon que “tem havido recentemente muito debate acerca do crescimento da desigualdade económica no mundo desenvolvido, acompanhado da aceitação generalizada de que o problema subiu para níveis intoleráveis. Mas, ao mesmo tempo, tem havido pouco esforço para ajudar a reverter a situação; ao invés, existe mesmo uma aceitação tácita de muitas formas de desigualdade e dos processos que a ela dão lugar”.

E ainda na mesma publicação, Ronald Inglehart, afirma que “hoje em dia o conflito já não é entre a classe operária e a classe média; é antes um conflito entre uma estreita minoria de afluentes e a grande maioria dos cidadãos” (como exemplo, em 1965, os CEOs das 350 maiores companhias americanas, auferiam 20 vezes mais que os trabalhadores da base; em 1989, 88 vezes mais; em 2012, 273 vezes mais).

A evidência dessa importância e atualidade podem também ser testemunhadas no debate entre nós, a propósito da proposta de orçamento do Estado: mais impostos direitos ou indiretos, mais impostos sobre as famílias ou sobre as empresas, mais impostos sobre o trabalho ou sobre o capital, mais apoios sociais ou mais taxas moderadoras. Estamos, acima de tudo, falar de igualdade!

E o debate não se avizinha fácil, pois, como afirmava na passada semana Pedro Adão e Silva (Expresso, 13.02.16) “a questão não é tanto os impostos que pagamos, mas o efeito destes no rendimento e nos serviços de que beneficiam as famílias”. Para concluir que “permanecemos uma sociedade com demasiadas desigualdades e com um tecido económico asfixiado pela carga fiscal.”

Ou seja, apesar do crescimento económico mundial, apesar de todas as políticas públicas de redistribuição de riqueza, apesar da enorme expansão do modelo europeu de estado social, a questão da igualdade continua a pôr-se com enorme relevo para a humanidade.

Estaremos, no fundo, perante uma questão eterna? Será a desigualdade natural? Será a desigualdade aceitável? Será a desigualdade inevitável? Será a desigualdade benéfica?

Ora a verdade é nascemos diferentes, temos diversas características físicas, intelectuais, diferentes meios familiares, vivemos em países mais ou menos ricos ou mais ou menos bem governados. Parecerá então que o ponto de partida da discussão será sempre a desigualdade. E o ponto de chegada?

O ponto de chegada será, naturalmente, a acompanhar a democratização, uma busca contínua por mais igualdade. Trata-se, no fundo, da aspiração humana pelo reconhecimento de que falava Hegel e que Fukuyama tão bem desenvolveu na sua obra Trust.

Por isso não podemos deixar de continuar a refletir sobre o significado actual da igualdade. A sociedade civil, o sistema económico, apesar da diminuição da pobreza em muitas partes do globo, não deixaram de ser fortemente inigualitários, concorrenciais, dominados por conflitos de interesses, cabendo à sociedade política, ao Estado, através da democracia, levar a igualdade a fazer o seu caminho.

Mas de que igualdade falamos hoje? Igualdade de resultados, imposta do topo para a base de forma tantas vezes autoritária ou a promoção da igualdade de oportunidades, através de regras gerais legítimas e legalmente estabelecidas para todos, no respeito pela máxima liberdade individual? Estará em causa a caracterização ideológica entre esquerda e direita (Bobbio)? Estará em causa a igualdade entre diferentes esferas da vida em comunidade (Walzer)? Estará em causa a construção de uma sociedade inclusiva (Giddens)? Estará causa a igualdade como equidade, discriminando positivamente a diferença (Rawls)? Estará em causa a igualdade como capacitação (Sen)? Ou está em causa apenas a garantia da clássica igualdade como integridade, consideração e respeito pelo próximo (Dworkin)?

Não vou, naturalmente, desenvolver os argumentos de cada uma destas possíveis facetas da igualdade e respetivas correntes intelectuais, mas centrar-me naquela que me parece continuar a fazer sentido nos nossos dias: a igualdade de oportunidades que permita a realização de vidas livres com significado no seio de sociedades complexas e cada vez mais multiculturais.

Reconheço que parto do abandono de um qualquer ideal de igualdade que procure autoritariamente garantir os mesmos resultados para todos. Reconheço ainda que deixo de parte a velha utopia assente na redistribuição de todos os bens primários para alcançar uma igualdade plena, pois esta forma de garantir a igualdade de resultados é, não só impossível, como indesejável.

Primeiro, a igualdade de oportunidades deve ser mais do que a mera igualdade formal, jurídica, de todos perante a lei, na medida em deve procurar, através da interferência das políticas públicas, a garantia de condições de acesso ao maior número dos referidos bens primários: saúde, educação, apoio social aos carenciados, etc.

Isto é, o propósito dos direitos de cidadania não pode ser apenas o de prover a igualdade em si, mas garantir a real oportunidade, a valorização dos talentos individuais, evitando a exclusão dos menos capacitados. Cidadãos livres e iguais, mas também pessoas, seres humanos livres e diferentes nos seus projetos de vida.

Recorde-se que a ideia da igualdade de oportunidades começou por ser de esquerda, em luta contra os privilégios da direita, depois foi aproveitada pelo discurso desta, durante a década de oitenta do século passado para afastar todo e qualquer padrão de justiça social (Hayek) que limitasse o indivíduo e a sua normal inserção nos mercados (recorde-se a celebre frase de Margaret Thatcher: “a sociedade não existe apenas existe o indivíduo”).

Segundo, a igualdade de oportunidades deve voltar a ser retomada pelo centro político com o objetivo de fazer um caminho que garanta a oportunidade, em esferas tão diversas como a da educação, a saúde, a segurança ou outros bens primários.

Ora, para retomarem o seu espaço na defesa da igualdade de oportunidades, o clássico socialismo democrático, a social-democracia, mas também a democracia cristã ou as modernas correntes do progressismo, devem voltar-se novamente para as questões económicas, centrar-se nas suas respectivas raízes éticas, no seu impulso igualitário, no efetivo apoio aos mais desfavorecidos.

As questões fracturantes, culturalmente transversais ou em torno do género ou do ambiente, sendo relevantes, devem deixar de ser o centro da controvérsia social e dar novamente lugar ao retorno da igualdade democrática, baseada na singularidade do indivíduo, nas suas relações de reciprocidade, na reconstrução dos seus laços comunitários.

Mais do que a obsessão antiga e recorrente com a desigualdade, será cada vez mais necessário, combater desigualdades irrazoáveis e injustificáveis. Como dizia Karl Popper e, de algum modo, ainda hoje diz Amartya Sen, mais do que combater o mal em abstrato (leia-se a desigualdade em abstrato) é fundamental evitar cada mal em concreto (leia-se reduzir ao máximo as desigualdades que afetam a integridade humana e o respeito devido pela sua igual consideração).

Afinal toda a ideia de igualdade se reconduz à necessidade de reconhecimento, à necessidade de valorizar o mérito e atenuar ou compensar um passado que já não se refaz de modo a permitir um futuro menos desigual. A igualdade de oportunidades combate esse determinismo que teima sempre em regressar, mas sem cercear a máxima liberdade possível.

Parafraseando a conhecida expressão do Marx (que, para além de todas as críticas, com o seu contributo intelectual, tanto ajudou a afirmar a igualdade) mais do que compreender a igualdade e afirmá-la em abstrato, importará transformá-la em algo benéfico para cada ser humano em concreto.

E termino, como comecei, usando as sábias e premonitórias palavras de Alexis de Tocqueville: “Penso que os povos democráticos têm um gosto natural pela liberdade; entregues a si próprios, procuram-na, amam-na, e só dolorosamente se vêm separados dela. Mas, pela igualdade, a sua paixão é ardente, insaciável, eterna, invencível: querem a igualdade na liberdade e, se não podem alcança-la, desejam-na mesmo na escravidão.”

Professor universitário