Na tradição da literatura confessional ocidental, que terá começado com as Confissões de Santo Agostinho, encontramos um dos livros que melhor permitem compreender os tempos atuais: as Confissões de Jean-Jacques Rousseau, que reconstituem os passos deste fascinante filósofo do século XVIII. Apesar de regularmente designado como um dos representantes do iluminismo, dificilmente Rousseau pode ser entendido como um pensador das Luzes em virtude da sua radical desconfiança perante a Razão, a Ciência e o Progresso, que eram fundamentais para os philosophes. Em sentido contrário, encontramos em Rousseau a semente da contrarresposta às Luzes, que se traduzirá, no século seguinte, por um espírito romântico de suspeita civilizacional, nostalgia por um passado idealizado de comunhão com a natureza, sofrimento existencial – e, sobretudo, uma contínua incursão em torno do eu, num permanente culto da individualidade. Na abertura das Confissões, Rousseau afirma:

“Quero mostrar aos meus semelhantes um homem em toda a verdade da natureza, e esse homem serei eu. Eu só. Sinto o meu coração, e conheço os homens. Não sou feito como nenhum dos que tenho visto; ouso crer não ser feito como nenhum dos que existem. Se não valho mais, sou pelo menos diferente. Se a natureza fez bem ou mal, ao quebrar o molde em que me vazou, é o que só poderá ser julgado depois de me haverem lido.”

Na verdade, a vida de Rousseau foi a vida de um homem atormentado e desconfiado, considerando que os amigos o traíam constantemente e dispondo-se a cortar relações com quase todos eles. Nessa luta contra o mundo, as Confissões têm precisamente como objetivo contar a sua versão da história para que se compreenda como ele foi enganado e vítima de um conluio generalizado. A obra não cumpre, porém, esse propósito: ao longo do relato, que é simultaneamente divertido e tortuoso, encontramos uma alma queixosa que interpreta tudo o que lhe acontece como resultado de uma enorme injustiça. Ainda durante a juventude e a propósito de um mero incidente, afirma:

“A justiça e inutilidade das minhas queixas deixaram-me na alma um fermento de indignação contra as nossas estúpidas instituições civis, onde o verdadeiro bem público e a verdadeira justiça são sempre sacrificados a não sei que ordem aparente, destruidora na realidade de toda ordem, e a qual não faz senão acrescentar a sanção da autoridade pública à opressão do fraco e à iniquidade do forte.”

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Ainda assim, a sua sensibilidade especial leva-o a empreender uma melhor compreensão da natureza humana, sobretudo no século das grandes transformações, que interpelaram diretamente o homem na sua individualidade. Na verdade, a teoria do reconhecimento que devemos a Hegel já se encontra em Rousseau, como podemos ver no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens:

“Assim que os homens começaram a avaliar-se uns aos outros, e que a ideia de reconhecimentose formou no seu espírito, todos se acharam no direito a ele e não mais foi possível recusá-lo impunemente a ninguém. Daí resultaram os primeiros deveres de civilidade mesmo entre os selvagens, e todo o erro voluntário se transformou numa afronta, porque juntamente com o mal que resultava da injúria, o ofendido via nela o desprezo da sua pessoa, amiúde mais insuportável que o próprio mal. Foi deste modo que as vinganças se tornaram terríveis, os homens sanguinários e cruéis, punindo o desprezo a que eram votados de um modo proporcional à sua avaliação do caso.”

É nele, então, que podemos encontrar um dos lastros da viragem identitária que marca os nossos dias. Após dois séculos de liberalismo lockiano e luta por direitos iguais, passamos agora para uma reflexão e uma ação políticas centradas na identidade e na luta contra as instituições. Trata-se de um pensamento radicalmente individualista, que perceciona a sociedade e as suas instituições como inerentemente injustas e repressoras da individualidade. O resultado é um estado de permanente contestação, no esforço de adaptar o mundo à nossa identidade, que é definida isoladamente, e exigindo que os outros alterem o seu comportamento para responder às nossas reivindicações pessoais.

Este modo político é particularmente evidente na agenda trans e tem-se manifestado em formas que desrespeitam a esfera individual dos outros e põem em causa direitos de outros grupos que foram muito difíceis de conquistar. É por essa razão que o mundo anglo-americano tem assistido a disputas cada vez mais acesas entre movimentos trans, de um lado, e feministas e lésbicas, de outro. Pensemos em Sheila Jeffreys, que considera o transgenderismo um insulto, Posie Parker, que tem assumido uma defesa vocal pelos direitos das mulheres, ou Abigail Shrier, que fala em dano irreversível. Em resultado daquela agenda, a mulher tem sido novamente confrontada com a velha pergunta: o que é uma mulher? (deixaremos este tópico para o próximo artigo)

Em Portugal, temos a sorte de (quase) tudo chegar mais tarde, mas não parecemos querer aprender com o que tem acontecido nos outros países. Pelo contrário, o Partido Socialista insiste em avançar cegamente com uma agenda progressista, mesmo que ela se revista de inúmeras contradições. Ora, foi para dar cumprimento à Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto (sobre o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa) que, no início do ano, passou a vigorar o princípio de que os reclusos devem ser colocados nos estabelecimentos prisionais do sexo com o qual se identificam. Esta medida, que visa a não discriminação de pessoas transgénero, viola, no entanto, a liberdade individual dos outros utilizadores desses espaços, que são obrigados a respeitar aquela autodeterminação mesmo que a pessoa não tenha efetuado uma transição física completa. Tal não poderia deixar de causar problemas, pelo que na semana passada foi noticiado que guardas prisionais do sexo feminino invocaram objeção de consciência para recusarem revistar uma pessoa que se autodetermina como mulher, mas mantém órgãos sexuais masculinos. Se tudo começou com problemas de linguagem e coisas aparentemente menores, estamos já num patamar diferente em que o espaço feminino parece de novo ameaçado.

Ao contrário do que as posições mais vocais possam dar a entender, as medidas relacionadas com a autodeterminação do género não são mera questão de inclusão, respeito e reconhecimento. Pelo contrário, elas convocam questões difíceis que deveriam ser devidamente discutidas e não impostas sem reflexão. Acima de tudo, não podemos esquecer de que o eu não é uma mera questão de autodeterminação: quando vivemos em sociedade, a identidade pessoal é construída com os outros e a partir de regras sociais que formulamos em diálogo com os outros – e não pode ser construída contra os outros.