“Eu não votei nestes idiotas. Votei nos outros idiotas.”, lia-se num cartaz exibido em 24 de dezembro de 2013 de um dos milhares de manifestantes na “praça” Bolotnaya.

Os políticos usam vários métodos para passar a sua mensagem. Não estarei errado se achar que algumas declarações políticas são melhor toleradas se ditas com humor. A utilização do humor enquanto forma de transmissão da mensagem política tem, entre outras, a grande vantagem de diminuir a agressividade nos opositores. A utilização do humor na política, para além de fazer sorrir os adversários (alguns), de relativizar as diferenças e identificar interlocutores, tem sempre o benefício de nos apresentar como alguém com um “toque de veludo”. Os revolucionários não se riem de si próprios.

Lia eu sobre a Rússia pós URSS, quando deparei com esta frase. E desde que a li não mais me saiu da pele. “Eu não votei nestes idiotas, votei nos outros idiotas”, era uma expressão usada na contestação contra fraudes eleitorais, mas que bem poderia ser usada em muitos outros contextos.

E era assim que há muito me sentia. Desde há muito que a política e os políticos me desiludem. Esta minha decepção resulta da acção tanto dos “em quem não votei” como dos “em quem votei”. E não sou seguramente caso isolado. Avaliando pelo nível de abstenção, cerca de metade dos eleitores não se revê no actual espectro partidário ou no modelo de governação que resulta da constituição de 1976.

Este desapontamento advém do facto de, com o actual espectro partidário, qualquer acto eleitoral ser um desafio em que perdemos sempre. É um jogo a que muitos se recusam ou não se interessam em participar. Disto resulta a abstenção e o afastamento em relação à gestão da coisa pública. E não é difícil ler nas entrelinhas a causa deste desapontamento. Os casos de incompetência na governação e a promiscuidade entre o mundo da política e dos negócios são, seguramente, duas das principais causas para a revolta dos cidadãos. Mas é quase sempre uma revolta mansa e sem consequências. Esquecemos demasiadamente rápido. “Somos uma sociedade pacífica de revoltados. Falta-nos o romantismo cívico da agressão”, dizia Miguel Torga que tão bem nos descreveu.

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Nos últimos meses, uma sucessão de casos mais mediáticos mostrou-nos que a promiscuidade entre partidos políticos, governo central e governos autárquicos, e o mundo dos negócios, ainda que uma realidade de sempre, parece agora ser uma evidência inescapável.

Perturbados com o incremento de casos e a imagem que de si estavam a dar, os “em quem não votei” elaboraram um questionário para que eventuais futuros governantes opinassem sobre a sua honradez e possíveis conflitos de interesse. Alinharam assim um conjunto de 36 questões para inquirir a integridade dos candidatos. Mas, para inquirir a integridade dos candidatos? Pode alguém ser nomeado sem que se conheça o seu passado e competência? Quem faz o convite não conhece quem convida? Parece que não! E nem os “em quem não votei” nem os “em quem votei” pareceram dar conta deste detalhe. O problema de todos estes casos, pelo menos os mais recentes, radica na forma como é feita a seleção de elementos para o governo.

De entre todas as forças partidárias, e que me apercebesse, apenas Sérgio Sousa Pinto teve a lucidez de colocar a questão óbvia. Como se realiza o processo de recrutamento? A pergunta foi lançada num dos habituais painéis de comentadores. Talvez por serem muitos e ninguém os levar a sério, talvez por a resposta ser incómoda, até hoje não vi esta questão ser adequadamente abordada.

Na ausência comprometida de uma resposta, a explicação parece-me óbvia. O nosso sistema político assenta em partidos políticos e estes têm nos seus militantes uma malha de cumplicidades, vícios e habilidades que mais cedo ou mais tarde se reflete na hierarquia do poder. As distritais, as concelhias dos partidos políticos e o seu braço armado, as autarquias, sem esquecer os “Jotas”, são um viveiro onde todos efectuam o seu recrutamento. E neste processo há que pagar lealdades, fidelidades e cumplicidades. Há que arregimentar apoios, há que solidificar a posição na hierarquia do partido, há que reforçar a posição para próximos actos eleitorais, ou, pior ainda, há que marcar posição para uma qualquer oportunidade de negócio. É preciso ter apoios, e para isso há que os pagar.

O risco é o que se viu, e Sérgio Sousa Pinto apontou subtilmente para a ferida. Não é com um questionário que o problema de base fica resolvido. A malha partidária, tal como está organizada, não vai melhorar com um questionário. No actual modelo partidário não interessa a competência do escolhido. O importante é que a nomeação sirva o jogo das “fidelidades”, um Jogo que mistura a corrupção mesquinha, com a ainda mais grave hipocrisia dos partidos que se servem deste tipo de expediente para se financiarem. Tanto os “em quem não votei”, como os “em quem votei” estão comprometidos com esquemas de financiamento do género.

E se o cenário é problemático, com o actual modelo de angariação de apoios e governantes não podemos esperar que os dirigentes resolvam os problemas da população, isto é, que governem! Governam-se, creio ser expressão mais adequada. O principal objectivo de quem está no poder é o próprio poder. Não esperamos que alguém que nele está viciado derive num processo de autorregeneração. As instituições não se reformam por dentro. Enquanto o actual leque partidário persistir, e, com ele, a forma como elegemos os nossos representantes, enquanto o modelo de governação for o presente, a desdita a que assistimos diariamente não vai soçobrar.

As fidelidades, lealdades, e cumplicidades estabelecidas ao longo de anos criaram na nossa sociedade um sistema de ganho duplo, que compensa quem se senta à mesa do erário. Não incentiva a mudança. E não só a não incentiva, como os vícios e dependências se tendem a acentuar. O esqueleto de conivências ossifica, fica anquilosado e envolve todos os intervenientes, activos ou cúmplices, e sem mobilidade torna a mudança difícil e improvável. Cria-se assim um nicho, no sentido ecológico do termo, e que alguns instintivamente apelidam de sistema, mas que mais não é que um nicho em que, para se sobreviver, se tem de estar adaptado. E enquanto nicho exerce também o seu papel na seleção natural. Só quem estiver adaptado ao sistema o pode usar com vantagem e com benefício próprio.

De tempos a tempos a sociedade civil revolta-se, manifesta-se, revela o seu descontentamento e desagrado, mas são arrufos de curta duração. Têm consequências, mas estas mais não são do que uma oportunidade para perpetradores pedirem desculpa, redimirem-se, e assim reforçarem a sua legitimidade. De tempos a tempos é preciso que algo aconteça para que a sociedade descomprima e tudo fique na mesma.

Este decaimento crónico para a corrupção, nepotismo e compadrio, não seria tão problemático se a alternância democrática entre os “em quem não votei” e os “em quem votei” desse espaço às mudanças necessárias. Mas isso não acontece. Enfermam da mesma “doença”. Quando surgem os casos de corrupção limitam-se a reconhecer os infratores. Ajudam o circo mediático para que a “revolta” entre no zeitgeist, mas recusam-se a ver que, mesmo na sua condição de oposição, o seu recrutamento é também uma expressão da forma “mafiosa” como os partidos políticos capturaram a sociedade. E este comportamento imoral, ao contrário do que alguns sugerem não é apenas um problema de segundas linhas partidárias. Vejam-se os casos de nepotismo no XXI governo constitucional e fica-se esclarecido. Aí, o mérito vinha dos genes ou nos lençóis. Veja-se ainda aquela crisálida que, enquanto deputada, era consultora e detinha interesses numa empresa directamente dependente de políticas públicas. Deem-lhe espaço e vamos assistir a uma metamorfose bem interessante.

Mesmo que os “em quem votei” viessem a alterar a sua organização e lógica partidária, não me parece que tenham qualquer hipótese de assumir o poder e redimir a sociedade. Bem pode o actual líder da oposição esforçar-se por uma posição ganhadora, que o seu grau de sucesso parece ir pelo mesmo caminho dos antecessores. Um caminho de emagrecimento até à irrelevância. Este meu pessimismo advém do facto de os “em quem não votei” terem alimentado na sociedade portuguesa um sentimento de medo e insegurança que faz com que qualquer tentativa de alternância seja difícil, se não impossível.

Todas as sociedades são controladas pelos Média, e quem controla os Média, controla a sociedade. Como dizia Tocqueville, as democracias necessitam de meios de controlo de qualidade e isentos que funcionem como contrapoder. Não tenho dúvida de que muito do que é discutido e aceite pelo cidadão, tem a orientação pelos Média. Mas não creio que exista um plano deliberado, uma qualquer conspiração para o adormecimento da sociedade e o seu controlo. Esta letargia instalou-se porque, ao longo de anos, várias foram as decisões que a sociedade tomou e se acumularam nesse sentido. O resultado que temos hoje foi sendo contruído ao longo de muitos anos, e a característica do português actual, um cidadão medroso, acomodado e dependente do estado, está de tal forma intrincada no nosso modo de ser, que qualquer proposta para alterar a sociedade é vista de imediato como um perigo à segurança, e como tal liminarmente rejeitada. A nossa sociedade é uma agremiação de acomodados. Não há nenhuma orientação superior nem uma qualquer conspiração que nos leve a ser como somos.

O adormecimento da sociedade e a sua dependência do estado é um nicho (nicho aqui também no sentido ecológico do termo) que fomos construindo nos últimos séculos. Já em texto anterior, O aeroporto, as minas e o ganso, publicado e disponível no Observador online, tinha chamado a atenção para o caminho que a sociedade trilhava. Na altura fiz uma resenha histórica da nossa crónica dependência do estado, um estado paternalista e protector. A dependência do estado parece assim ser parte da nossa origem e também o nosso destino. Somos incapazes de tomar conta de nós e assumir responsabilidade. E se assim somos, também os nossos governantes o são. E com a coragem que não têm, acentuam os nossos medos e dependência, o que em última análise lhes é igualmente útil pois sabem que uma população com medo é avessa a mudança.

A título de curiosidade veja-se o que se passa com a obsessão com o déficit, as contas certas e a redução da dívida pública. Este tipo de prioridades era habitualmente uma precedência “dos em que votei”, mas nos últimos anos esta fixação estendeu-se aos outros. À primeira vista poderia ser dito que tinham aprendido com erros passados e que por isso enveredavam por um caminho de finanças públicas de maior responsabilidade. Ora isto deve ser verdade, mas não é a verdade toda. A verdade oculta é que aproveitaram o sentimento negativo que se instalou na população durante a intervenção da Troika, para surgirem agora como agentes de proteção contra esse perigo. A população vê-os assim como protectores. Não há como não lhes reconhecer o génio de em dez anos terem transformado um problema por eles criado, em algo que agora têm o mérito de evitar. Chapeau!

Em frente do desconhecido o ser humano pode responder de uma de duas maneiras. Há os que receiam a mudança, evitam o perigo e por isso são conservadores. E há os que abraçam a mudança, não receiam o risco e pautam as suas decisões pelo ganho e recompensa a que aspiram e que por vezes atingem. Nenhuma sociedade pode subsistir com o predomínio de uma destas características. Uma sociedade dominada pelos que procuram a recompensa e ganho, é uma sociedade que frequentemente, demasiadas vezes, se coloca em risco e se desagrega num individualismo socialmente insustentável. Também o reverso não é viável. Uma sociedade dominada pelo medo ao risco, avessa à mudança, é uma sociedade que lentamente se transforma numa “ficção gramatical”. Uma sociedade sustentável precisa de diversidade, precisa de equilíbrio.

As sociedades que sucessivamente se purgaram das mentes mais brilhantes e desalinhadas (por exemplo: os “navios de filósofos” no consulado de Lenine, e os expurgos promovidos por Estaline e Béria na década de trinta), criaram as condições para que população daí resultante seja medrosa, conservadora, e permita formas de governo autocrático ou totalitário. É esse o nicho que resulta desse tipo de intervenções.

Em Portugal, de forma crónica, convidamos os mais desalinhados e descontentes a emigrarem. Favorecemos a emigração dos que tinham mais apetência para o risco e com isso desequilibramos a sociedade. Favorecemos assim uma sociedade dominada por um português medroso, recoso e avesso à mudança. Somos cada vez mais uma sociedade pacífica de revoltados.

E o sublinhar desta nossa característica deve-se não apenas a estes fenómenos de emigração. Os “em quem não votei”, ao estimularem e premiarem a dependência do estado, reforçam na sociedade portuguesa essa característica, que por um “efeito de manada” fica cada menos disponível para a mudança. E são muitos os sinais que os nossos governantes têm dado para esse estado de medo e dependência. Mais de 60% dos portugueses depende do estado para a sua subsistência. Igualmente noutros domínios a população vive em dependência porque lhe criaram um “estado de medo” permanente. Veja-se o que aconteceu com o COVID, o que acontece com os “estados de alerta” diários. Alertas por tudo e por nada, e quando estes medos não são suficientes, assustam-nos com os perigos da direita populista, com o regresso do Passos Coelho, ou a descida a terras Lusas do Diabo (verdade se diga que este papão foi agitado pelos “em quem votei”. Um autêntico tiro no pé), ou ainda com as “alterações climáticas”, estas últimas sempre apresentadas num contexto de medo, hipocrisia e greenwashing.

Este ambiente de medo e desconfiança atingiu um ponto alto quando media, sociedade, Ministério Público e políticos entraram na obsessão de ver um potencial corrupto em cada cidadão. Claro que os últimos casos que vieram a público ajudam a esta ideia. Mas há casos em que nada de extraordinário se passou. Apenas obsessão e pânico. Contudo, e apesar da notória irrelevância de alguns destes casos, os seus protagonistas, em vez de os explicarem alinharam pela negação. Mentiram. Talvez tenham feito isso porque tinham a consciência remelada, talvez por medo.

É assim que este quesito de 36 perguntas deve ser visto, fruto do medo. Os “em quem não votei” elaboraram este inquérito, não porque o verdadeiro corrupto com facilidade se esqueça que o é. Elaboram-no porque têm medo. Têm medo do que as pessoas possam pensar. Têm medo e não querem responsabilidade, querem livrar-se de ambas. Mas ao fazê-lo aumentam o medo na sociedade. Dizem à sociedade que a corrupção é a regra e que o estado é paternalista e vai uma vez mais dar proteção, mas são incapazes de reconhecer que muito do mal na sociedade resulta dos medos acumulados e também da forma como os partidos políticos se organizam e o que daí se reflete. Falta-nos o romantismo da agressão. Falta-nos a determinação para quebrar essas estruturas anquilosadas em que se penduraram os partidos políticos que capturaram a sociedade. Falta-nos a vontade, faltam-nos talvez duas ou três gerações.