I know I am, but what are you?”. Esta é uma frase americana pitoresca, algo saloia até. Popularizada pelo ator Paul Reubens no filme de1985 Pee-wee’s Big Adventure, por Tim Burton. Este é o tipo de resposta tradicional no parque infantil, onde uma criança responde a outra no estilo “aquilo que me chamaste é verdade, mas será que consigo que digas que és o mesmo, ou pior”. O Presidente dos Estados Unidos Joe Biden, naturalmente apreensivo com o estado da democracia no país que governa, resolveu partilhar essas preocupações com os americanos, e o resto do mundo, num discurso à frente do Independence Hall, em Filadélfia. Esse lugar tem um significado especial, uma vez que é o lugar onde nasceu a democracia dos Estados Unidos. A decisão de realizar o discurso “A Batalha pela Alma da Nação” terá sido, seguramente, influenciada pela audiência na Map Room da Casa Branca com um conjunto dos melhores historiadores americanos. Esse grupo incluiu autoridades como Jon Meacham, Anne Applebaum e Michael Beschloss. Os paralelos históricos apresentados nessa conversa não podiam ser mais sérios. Os Estados Unidos estão num momento de rutura, tal como em 1860, quando Lincoln respondeu com o discurso político sobre “uma casa dividida contra si mesma, não pode permanecer”, na época em que os Estados do Sul ameaçavam dividir o país por querem manter a escravatura. Ou em 1941, onde Roosevelt proferiu o discurso das “Quatro Liberdades” no State of the Union Address, quando o nazismo crescia na Europa, a par do isolacionismo e as forças antidemocratas nos Estados Unidos. Agora, o opositor (interno, porque externos também há, como tem sido apresentado neste espaço) é a fação “façamos a América grande novamente” do Partido Republicano (MAGA Republicans).

Não é necessário estar a descrever este movimento e quem são os seus constituintes, algo que tem sido bem documentado no Observador, e que significará menos de 30% do eleitorado. Porém, são os mais vocais, mais ativos, mais disruptores, e deploráveis, como bem disse a antiga Secretária de Estado, Hillary Clinton. O Presidente Biden apresentou, lucidamente, o risco de os MAGA Republicans ganharem poder nos Estados Unidos: eles representam “um extremismo que ameaça a fundação da República”, que “o Partido Republicano de hoje está dominado, conduzido e intimidado por Donald Trump” (isto num sistema político de dois partidos), que “não podemos deixar que a credibilidade das nossas eleições seja minada […] e não podemos permitir que a violência [política] seja normalizada”. No entanto, nem tudo foi alarmismo, o Presidente reforçou que a “América é uma ideia, a ideia mais poderosa na história do mundo”, e que “eu conheço os vossos corações […] esta é uma nação que honra a sua Constituição”.

Se podem parecer óbvios, normais, construtivos e até banais apelos para se manter operacional a democracia representativa nos Estados Unidos, garantir a ordem Constitucional, a transição pacífica de poder, o diálogo no lugar da violência, já a reação ao discurso de Biden por parte de comentadores e políticos conservadores, assim como de antigos membros da Administração Trump, em canais televisivos que servem de megafone para milhões dos MAGA Republicans foi aterradora: Biden “declarou guerra a América”, “produziu o discurso de um ditador”, e foi “muito perigoso e assustador”. Esta é a mensagem que passa para aqueles que acreditam que tentar derrubar a ordem Constitucional para instalar um pseudoautoritário, depois de este ter perdido legitimamente uma eleição, é obra de “patriotas”, ou então é “discurso político legítimo”. Ou para uma significativa percentagem desse movimento, que acredita ser necessário o recurso a armas para conseguirem o que querem politicamente, e com grupos paramilitares que existem para servirem de “exército MAGA” (Proud Boys, III percenters, Oath Keepers), e que Trump fez saber, no mesmo dia do discurso de Biden, que os perdoaria através de um perdão presidencial, e que o governo iria pedir-lhes desculpa (!!) se fossem indiciados por insurreição.

Estes são também aqueles legisladores eleitos, no Senado e na Casa dos Representantes, que apelam ou a “motins nas ruas”, no caso de o antigo presidente ser indiciado pelo crime evidente de ter roubado documentos confidenciais e sensíveis da Casa Branca e de ter obstruído a sua devolução, ou para se desmantelarem instituições que tiveram o desplante (na opinião destes) de investigar Trump por esse (e outros) crimes. E este é o grupo do qual saem os candidatos que concorrem a eleições locais, com a promessa de não aceitarem os resultados das eleições mesmo que percam legitimamente, ou pior, se tiverem em lugares de poder afetar esses resultados, seja como Governador, Secretário de Estado, Responsável pelas Eleições, de anular a escolha popular e certificar como “vencedor” quem perdeu a eleição.

São estes, portanto, que gritam agora que a Administração Biden é que quer “anular a democracia e instalar um regime autoritário”. E, novamente, milhões de americanos acreditam nisto, e traduzem isso em ações na sociedade, com violência política, com a erosão das instituições, com a obtenção e manutenção de poder a qualquer preço.

O Presidente Biden usou uma frase paradigmática durante o seu discurso em Filadélfia: “não podemos amar o país apenas quando ganhamos”. No entanto, parece que esta frase só se aplica a democratas e republicanos tradicionais. Os MAGA Republicans parecem não alinhados com este espírito americano, democrata, Constitucional. E tentar inverter a lógica da frase, “eu sei o que sou, mas o que és tu” não me parece que vá causar efeito nestes. Apenas uma coisa resultará. Derrotas estrondosas nas eleições intercalares de novembro, e a manutenção do poder pelos Democratas da Casa Branca em 2024. Pode ser que, com vitórias claras das forças democráticas, os não democratas, tal como em 1860 e 1941, voltem ao processo democrático, ou sejam humilhados de tal forma que se tornem irrelevantes.

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