Seleccionar os saudáveis e eliminar os defeituosos é uma mania velha. Primeiro pelo bem da tribo ou da cidade, depois para garantir a pureza da raça ou a utilização racional de recursos escassos. O “defeito”, claro, variou com os tempos e os lugares: ser mulher, ser débil mental, não ser branco, sofrer de aleijão ou doença incurável.

No século XIX, o darwinismo deu à mania uma respeitabilidade nova. Em 1883 Francis Galton, primo de Charles Darwin, cunhou o termo “eugenia”, ou “bem nascido”, para designar “o estudo dos agentes que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações, física ou mentalmente”. Galton entendia que “as forças cegas da selecção natural (…) devem ser substituídas por uma selecção consciente” e que os problemas sociais resultavam da proliferação de gente com características inatas “viciosas” e “degeneradas”. Em 1908, um dos fundadores da Eugenics Society, em Londres, foi Leonard Darwin, filho de Charles Darwin.

Estas ideias serviram, nas primeiras décadas do século XX, para justificar o internamento compulsivo, a esterilização e o extermínio dos deficientes mentais, dos vagabundos e das raças inferiores. E não foram só os nazis a fazê-lo, embora não gostemos de o admitir: todos participámos. Basta deitar os olhos às revistas médicas da época, em qualquer país europeu, para ficarmos elucidados sobre o tema.

A eugenia do século XIX era um ideal das elites. Às pessoas comuns nunca interessou, nem interessa, se a “raça” é saudável ou “degenera”. Não interessam os filhos dos outros, só os próprios. A perda de influência das elites no espaço público ditou uma transformação importante: antes “populacionais”, as ideias eugénicas tornaram-se individuais. E egoístas (se temos cada vez menos filhos e se os temos cada vez mais tarde, não podemos dar-nos ao “luxo” de cometer “erros”).

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É por isso que investimos tantos recursos no rastreio pré-natal de doenças raras.

Por outro lado, se há poucas partidas, é importante maximizar as chegadas. Tal como a velha eugenia das elites não visava apenas eliminar os doentes, mas fortalecer e melhorar a “raça” (“contribuir positivamente para a melhoria das características do conjunto populacional”, nas palavras de Galton), também a nova eugenia egoísta usa o diagnóstico genético pré-implantação (que consiste em caracterizar geneticamente os embriões obtidos por fertilização in vitro antes de os implantar no útero), não apenas para identificar e eliminar os embriões defeituosos, mas também para seleccionar embriões “perfeitos”. Os americanos, que nestas coisas andam sempre à frente, já têm clínicas que oferecem aos futuros pais a possibilidade de escolher a cor dos olhos ou do cabelo dos filhos. Até arranjaram um nome para isso: “designer babies”.

A história não acaba aqui. De facto, o que são embriões “perfeitos”? Quais são os critérios de “perfeição”? Ser normal, isto é, ser igual à maioria? Não precisar de cuidados médicos? Outros tempos e lugares tinham ideias firmes sobre o assunto. Mas a nossa sociedade é “plural”.

Em 2006 um estudo intitulado Genetic testing of embryos: practices and perspectives of U.S. IVF clinics dava conta de que 3 por cento das clínicas americanas já tinham usado o diagnóstico genético para seleccionar embriões com defeitos específicos, como a surdez hereditária ou o nanismo.

Houve polémica mas a condenação da prática não foi geral. Os seus defensores, na verdade, recorreram a argumentos típicos da eugenia egoísta: que os pais têm o direito de escolher e que a integração da criança na família deve ser o factor decisivo. Afinal, se pais de estatura normal podem não querer um filho anão, por que não poderão pais anões não querer em casa um jogador de basquete?

“Um embrião anão saudável é um embrião saudável. Será uma criança que vai à escola e tem amigos”, disse Cara Reynolds, uma anã, ao seu médico.

No monólogo final da peça O Rinoceronte, de Ionesco, Béranger, único sobrevivente da epidemia que transformou todos os habitantes da cidade em rinocerontes, exclama: “Ah, como gostaria de ser como eles!” Na Metamorfose de Kafka, ao contrário, Gregor Samsa é morto porque é ele e só ele quem se transforma num monstruoso insecto. Gostamos dos nossos iguais.